Educação anarquista: explorações contemporâneas

Rodrigo de Almeida Ferreira, Sílvio Gallo

APRESENTAÇÃO

Sílvio Gallo

Rodrigo de Almeida Ferreira

No imaginário social a anarquia remete à desordem, à insegurança, à instabilidade. Decorrência compreensiva do viés etimológico da palavra, quando se propõe pensar a anarquia como ideia política o desconforto é potencializado por traços que sugerem o caos no qual as pessoas viveriam sem governo, sem controle, sem autoridades hierárquicas, sem regras coercitivas. Mas, também, há cores menos carregadas com que se costuma considerar uma sociedade anarquista, não obstante os tons pasteis manterem o quadro estigmatizado. Estas pinceladas mais suaves sugerem uma nuance benevolente, próxima à tolerância, que simplifica o pensamento anarquista, articulando-o à inocência política devido aos valores universais nos quais se baseia para a reconstrução da sociedade, como liberdade e justiça. Portanto, as representações sociais tendem a inscrever a pretensão da sociedade ácrata ou num matiz escuro de caos, medo e violência, ou numa paleta onírica, distante da realidade, irrealizável, utópica.

Acompanhando a interpretação de Bronislaw Baczko (1985) de que os imaginários sociais impactam o cotidiano, entende-se que as representações políticas decorrem de construções e de disputas históricas. As representações relativas à anarquia e aos anarquistas são iniciadas a partir de meados do século XIX, quando as críticas à reorganização do Estado como base para a economia capitalista e a exploração do trabalho assentadas no liberalismo econômico estimularam a defesa de outras formas de organização social. Em 1840 Pierre-Joseph Proudhon entrou para a memória da cultura política como a primeira pessoa a se autoidentificar como anarquista, feito registrado no livro O que é a propriedade?, no qual colocava o dedo na ferida sobre as causas dos graves problemas sociais e da exploração socioeconômica, respondendo de modo direto à pergunta-título: “A propriedade é um roubo!” (Proudhon, 1975, p.11). Por suposto, ao atentar contra o mais sagrado dos valores dos capitalistas, além de outros pilares da sociedade contemporânea como a Igreja, o Estado e o militarismo, os anarquistas foram prontamente considerados como perigosos inimigos – não apenas pelos liberais capitalistas, mas também por amplos segmentos sociais de base moral cristã, bem como os defensores de um Estado forte e centralizado, inclusive aqueles cujas linhas políticas se aproximam das causas sociais e dos direitos dos trabalhadores, como o socialismo de Estado do século XX.

Com tantas trincheiras abertas em campos de batalhas contra forças poderosas, compreende-se os extremos com os quais o anarquismo é atacado por seus detratores, ora simplificando-o como utopia, ora estimulando o pânico contra suas propostas consideradas radicais. Observa-se que, nessas narrativas, o caos e o temor de um mundo anárquico têm lugar de destaque, haja vista o potencial mobilizador que o medo exerce a favor do conservadorismo. O historiador do anarquismo George Woodcock observa que:

Há uma grande confusão em torno da palavra anarquismo. Muitas vezes a anarquia é considerada como um equivalente do caos e o anarquista é tido, na melhor das hipóteses, como um niilista, um homem que abandonou todos os princípios e, às vezes, até confundido com um terrorista inconsequente. Muitos anarquistas foram homens com princípios desenvolvidos; uma restrita minoria realizou atos de violência que, em termos de destruição, nunca chegou a competir com os líderes militares do passado ou com os cientistas nucleares de hoje. (…) anarquismo é a doutrina que prega que o Estado é a fonte da maior parte dos nossos problemas sociais, e que existem formas alternativas viáveis de organização voluntária. E, por definição, o anarquista é o indivíduo que se propõe a criar uma sociedade sem Estado. (Woodcock, 1986, p.13)

Como se infere, as ideias do anarquismo tensionam fortemente a arena sociopolítica e econômica; por conseguinte, provocam em seus oponentes desequilíbrios geradores de deturpações e argumentos infundados às suas proposições. A complexidade e a multiplicidade de percepções da anarquia enquanto filosofia, política e cultura, todavia, fazem com que seja mais apropriado considerá-la plural, ou seja, anarquismos. Apesar dos recorrentes ataques a que são submetidos, os anarquistas mantêm-se resistentes, persistem combativos e, assim, atualizam o pensamento anárquico enquanto relevante crítica e alternativa de organização social.

Quase dois séculos após Proudhon ser referenciado, em perspectiva ideológica, como marco memorial do surgimento do anarquismo, a persistência de tantos estereótipos negativos a respeito dos anarquistas não deixar de espantar. Para além de desconstruir os frágeis argumentos detratores, conhecer e divulgar a história do anarquismo é relevante, também, para compreendê-lo, por parâmetros distintos, como contraponto à sociedade contemporânea.

A proposta deste livro, portanto, é pensar os anarquismos em sua perspectiva histórica e suas práticas para dimensionar as possiblidades concretas de se realizar nos contextos do século XXI. Embora permaneça no horizonte a preconizada transformação estrutural da sociedade, sobremaneira pela implosão dos pilares dos autoritarismos do Estado e das violências do capitalismo, considera-se também que é possível experimentar relações 10 calcadas nos valores anarquistas em situações mais específicas, ainda que essas autonomias sejam localizadas e temporárias, quer dizer, sem que a queda do Estado por uma revolução social e universal tenha ocorrido. Isso porque, acredita-se que as experiências são constitutivas de aprendizados e importantes para a vivência de uma cultura anarquista, construída diariamente.

Os textos que compõem esse livro refletem sobre esse desafio na perspectiva da educação. Ressalva-se que a concepção atual de educação está fortemente enlaçada à escola. E é difícil ser diferente, dada a institucionalização da escola no século XIX, sobretudo com a criação dos sistemas públicos de ensino, atrelados às realizações das revoluções burguesas. Sua organização e apropriação como responsabilidade pelo Estado, sob a ideologia da racionalidade e de oportunizar condições de sobrevivência por meio de habilidades para o trabalho dentro da economia capitalista, disfarçam a leitura a contrapelo da escola como poderoso difusor da ideologia de controle atrelada à marca da divisão de classes sociais. Tamanha é sua força que mesmo movimentos sociais e políticos contrários ao capitalismo têm defendido a palavra de ordem da “escola pública, gratuita e de qualidade como direito dos cidadãos e dever do Estado”.

Nesse sentido, o viés escolar perpassa muitas das reflexões que se seguem, sem, contudo, desconsiderar a amplitude da educação para além do espaço escolar, tal como consideravam os anarquistas dos séculos passados. No século XIX e início do seguinte, os debates relativos à sociedade destacavam a escola e sua centralidade. Os anarquistas, fiéis a seu tempo, dedicaram atenção especial ao tema. A partir da crítica da estrutura escolar hierárquica, autoritária, limitadora da criatividade, condicionadora da obediência desde a infância, os anarquistas a repensaram. E foram além do seu espaço físico, considerando o problema da educação como central para superar as mazelas sociais existentes, sendo essencial repensar a própria concepção de humanidade em seu presente e futuro a partir das transformações dos valores fundantes que a escola estava 11 a estabelecer. Por esse ângulo, a história da educação anarquista permite reconhecer as balizas da sociedade libertária.

Em relação à educação, os textos dos pioneiros do anarquismo, como Max Stirner, P-J. Proudhon, Mikhail Bakunin e, pouco mais tarde, Emma Goldman, Piotr Kropotkin, Paul Robin, Elisée Réclus, Sebastien Faure, Francisco Ferrer y Guardia, João Penteado, todavia, não implicam na crença pueril de que a criança educada por pais libertários e em escolas construídas nessa filosofia a levaria a ser um adulto anarquista ou, ao menos, comprometido com a transformação da sociedade alicerçada em valores como liberdade, justiça e autonomia. Trata-se de um dilema que, por vezes, ultrapassa a linha tênue da contradição entre a educação preconizada pelos anarquistas e a prática da criação dos filhos, ao que, Emma Goldman assinalou:

A compulsão desperta a resistência, todos os pais e professores deveriam sabê-lo. Muitos se surpreendem pelo fato de que grande parte dos filhos de pais radicais são completamente contrários às ideias de seus progenitores, sendo que muitos se encaminham para caminhos antiquados, ou são indiferentes aos novos pensamentos e ensinamentos da regeneração social. Mas não há nada de incomum nisso. Pais radicais, embora emancipados da crença de propriedade, ainda se apegam tenazmente à noção de que são donos da criança e que têm o direito de exercer sua autoridade sobre ela. Se propõem a moldar e formar a criança de acordo com sua própria concepção do que é certo e errado, forçando suas ideias a ela com a mesma veemência do pai católico comum. (Goldman, 2019, p.89)

Distanciar-se da interpretação social orientada pela simplificada causa-consequência, pela qual a educação anarquista seria redentora de um novo mundo, não significa desconsiderar sua importância. Os anarquistas históricos, como salientado, encararam o desafio de propor novas formas de educar, sendo inspiradoras as experiências de escolas organizadas sob parâmetros libertários, como o Orfanato Prévost em Cempuis (Paul Robin; França), A Colmeia (Sebastien Faure; França), a Escola Moderna (Francisco Ferrer; Espanha), as Escolas Modernas nº 1 e nº 2 de São Paulo (João Penteado; Brasil). A organização e as práticas nesses espaços 12 estavam em consonância com o próprio entendimento da anarquia, sendo que a educação libertária partia do pressuposto da educação integral, assim compreendida por Paul Robin:

A ideia moderna – de educação integral – nasceu do sentimento profundo de igualdade e do direito que cada homem tem, quaisquer que sejam as circunstâncias de seu nascimento, de desenvolver, da forma mais completa possível, todas as faculdades físicas e intelectuais. Estas últimas palavras definem a Educação Integral. (Robin apud Gallo, 1996, p.2)

Educação integral para a formação do ser humano em integralidade, por completo. Esse princípio orientou as práticas da educação anarquista fosse ela exercida dentro dos parâmetros escolares ou/e fora da escola. Educar e educar-se como ato contínuo, presente nas ações cotidianas, pelos estudos formalizados, nos momentos lúdicos, nos espaços de reuniões e organização social. A ideia de educação para o pensamento libertário entende o indivíduo indissociável do coletivo, o corpo físico conectado ao mental, a reflexão integrada à prática. A percepção crítica se desenvolve pela consciência do ser e de sua integração ao coletivo. Na história da educação anarquista, quando se analisa as experiências das escolas construídas e mantidas dentro da perspectiva libertária, bem como nos momentos de educação informal, muitas vezes mediados pela arte e mobilizações sociais, veem à tona trabalho e criatividade, alegria e combate, festa e luta….

As práticas educacionais anarquistas, tanto na perspectiva do passado distante ou no contexto deste século, indicam parâmetros característicos recorrentes. A educação integral objetiva a transformação radical da sociedade, que considera a expectativa de futuro, mas com plena consciência de que se faz no e a partir do presente. As escolas anarquistas que existiram em várias partes do mundo, sobretudo até a primeira metade do século passado, se organizaram para estimular valores como a autonomia e a liberdade. Pensar a educação anarquista hoje não significa replicar aquelas situações únicas, cada uma com sua singularidade própria. Antes o contrário, mantém-se atento para se fazer nas condições concretas 13 que se apresentam, o que não significa, inclusive, pensar em um prédio escolar específico. Pensar em práticas parece mais plausível.

Os organizadores das escolas ácratas e seus mantenedores entendiam a importância da educação ampliada. Estimulavam, então, a matrícula de meninas e meninos para a coeducação, contrariando o moralismo católico. Os embates com a Igreja e seus fervorosos defensores, que quase sempre se valiam do Estado como meio de pressão, foram constantes. O anticlericalismo dos anarquistas, justificado pela história política de poder e opressão da Igreja e as restrições ao exercício da liberdade devido às amarras morais e dogmáticas do cristianismo, eram acentuadas na perspectiva educacional moderna racional. Por meio da razão, da confiança depositada no método científico como herança do iluminismo, os anarquistas confrontavam as práticas educativas assentadas nas tradições medievais. Embora esse embate já soasse incrivelmente anacrônico na virada do século XIX para o XX, ele perdura até os dias atuais. No Brasil, setores religiosos que exploram a educação continuam a reivindicar recursos públicos para suas atividades, como exemplificam as históricas disputas em torno das Leis de Diretrizes e Bases para a Educação (LDBs) ou na recente disputa por verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), ocorrida no decorrer de 2020. Além da persistência do moralismo conservador cristão – apesar das chamadas igrejas evangélicas terem quebrado a hegemonia católica, a “bíblia” permanece como sólido lobby político – como forte elemento de pressão nas práticas educativas ao ponto de avalizar projetos de censura ao professor como o “Escola sem Partido” (julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal)[3] ou que geram intolerâncias no cotidiano escolar, por exemplo, quando a história das culturas religiosas afro brasileiras e/ou indígenas são temas nas aulas. E tudo isso ocorre a plena luz de um Estado cuja laicidade é premissa constitucional, o que reforça a permanente vigília pela garantia do espaço público laico e reitera a importância da constante mobilização dos anarquistas nessa batalha anticlerical/antipastoral.

Cientes da ambiguidade da instituição escolar que, por um lado, exerce práticas de condicionamento e controle social, e por outro lado pode potencializar elementos críticos de transformação, a questão da educação extensiva e seu financiamento público sempre se colocou como enorme desafio para os anarquistas. Algumas experiências de escolas libertárias estiveram atreladas ao poder estatal, como o pioneiro Orfanato de Cempuis, onde a pressão conservadora da comunidade levou a municipalidade a destituir seu administrador, Paul Robin, apesar da liberdade de trabalho a ele conferida.[4] Outras experiências escolares anarquistas tentaram fugir da armadilha dos limites estatais e estabeleceram iniciativas próximas a cooperativas, como a Escola Moderna de Barcelona, onde Francisco Ferrer estimulava não só a coeducação entre meninos e meninas, mas também de classes econômicas distintas, e funcionava por meio de contribuições financeiras conforme as condições das famílias dos estudantes.[5] A cooperação para o funcionamento das escolas de bandeiras anárquicas tem sido uma prática recorrente para viabilizá-las, sendo que as permutas colaborativas carregam a dimensão educativa pela prática da solidariedade – um valor essencial da visão anarquista de mundo, diametralmente oposto ao individualismo capitalista diluído na ideologia da meritocracia. Mesmo com soluções parecidas, os embates com o Estado permaneciam, como ocorreu com o próprio Ferrer e com as primeiras escolas de João Penteado, no Brasil.[6]

É mesmo difícil considerar a educação pública atual sem um órgão regulador, especialmente porque, no decorrer do século XX, o Estado centralizou cada vez mais o poder de legislar e controlar financeiramente o campo educacional. Soma-se a isso a contradição em essência do pensamento antiestatal anarquista ter que lidar com uma educação dentro do Estado. Mas essa pertinente contradição não é totalmente impeditiva de se estabelecer práticas educativas com valores libertários, mesmo nas franjas do Estado. Um caso emblemático é o do Centro Educativo Paideia (hoje Escuela Libre Paideia), criado na cidade de Mérida, Espanha, em 1978. Operou e segue operando de forma autogestionária, sem qualquer relação com o Estado espanhol. Como não é reconhecido pelo sistema educativo do país, as crianças e jovens que ali estudam precisam depois validar seus conhecimentos, se quiserem, por exemplo, realizar estudos universitários.[7]

Dois aspectos podem contribuir para pensar a pertinência desse enfrentamento. A primeira é tomar a dimensão do público para além da “coisa comum” e do financiamento estatal. Talvez, considerar a escola pública como espaço onde se possa estabelecer relações criativas e horizontalizadas, subvertendo a lógica hierárquica e de controle dos órgãos governamentais, permita desenvolver aprendizados a partir das experiências dialógicas entre grupos sociais diferentes, configurando-se, assim, um local potencialmente transformador. É importante não perder de vista que, em lugares com abismos socioeconômicos e culturais decorrentes das diferenças de classes, a escola pública assume um importante papel para as pessoas mais pobres e filhos de trabalhadores, não somente como espaço de aprendizado básico, mas, em muitos casos, também local de sociabilidade e acesso à arte e à cultura. O segundo aspecto é retomar os limites de uma mudança estrutural radical do sistema educacional no tempo presente. Depositar a esperança em uma revolução universal – mesmo que geograficamente mais local –, para só então estabelecer relações educativas transformadoras na escola porque aí ela deixará de ser um instrumento de poder, parece cruel diante da curta existência da vida. Nesse sentido, embora se reconheça que a escola pública é “imprescindível à educação universal monopolizada pelo Estado e aos desdobramentos de práticas em múltiplas escolaridades. A criança é tida, por isso mesmo, como propriedade dos seus pais e do Estado” (Passetti; Augusto, 2008, p.30), também parece possível construir nas condições cotidianas brechas para organizar com os estudantes práticas educativas assentadas nos princípios anarquistas, constituindo-se uma zona autônoma; mesmo que temporária.

Ainda que um viés educativo anarquista possa ser reconhecido em um conjunto de práticas, não se entende uma ideia de pedagogia libertária no sentido reducionista e conformador de um padrão segundo as normas do pensamento educacional. Ou seja, não se espera que as práticas educativas libertárias possam ser ensinadas nos moldes da transmissão, de um receituário, o que seria incoerente com a dimensão colaborativa, horizontalizada e criativa da educação anarquista. O uso da expressão nos capítulos que se seguem, portanto, não desconsidera a multiplicidade de ações e práticas características dos anarquismos. A referência a uma pedagogia libertária deve ser lida a contrapelo, como tática para favorecer a sua inserção em espaços consolidados e formais de educação, sobremaneira, nos cursos universitários, especialmente naqueles de formação de professores. Seu uso soa mais no sentido de uma “antipedagogia”, como salientou Beniamino Vizzini, no jornal anarquista italiano Umanitá Nova, em artigo de 1989.

O ensino monopolizado pelo Estado e suas Secretarias de Educação explica, parcialmente, porque há poucas variações pedagógicas nas escolas, sobretudo aquelas mais críticas ao sistema político e econômico vigente. O paradoxo está na ausência da discussão sobre a educação anarquista em espaços de formação docente. Mesmo a rubrica pedagogia libertária parece insuficiente para romper as resistências em se estabelecer nas Faculdades de Educação e de Licenciaturas debates sistematizados sobre a diversidade de ações didático-pedagógicas. O levantamento nas matrizes curriculares destas unidades nas universidades federais, por exemplo, apresentará um resultado frustrante para quem deseja conhecer mais sobre a educação anarquista, mesmo enquanto disciplinas ofertadas como eletivas e/ou optativas.

O desconhecimento de outras possibilidades educacionais – não apenas anarquista – reforça as dificuldades de se estabelecer diálogos e repensar a educação em outras balizas que não a de viés tradicional liberal e por pedagogias autoritárias. O desconhecimento, inclusive, explica em parte a resistência de muitos professores a encarar com mais radicalidade os desafios da profissão. Os espaços de reflexão, como as universidades e associações de trabalho e movimentos sociais, são essenciais para conhecer, divulgar e exercitar. Este livro, por exemplo, começou a ser rascunhado a partir das condições construídas na disciplina Filosofia da Educação Anarquista, na Faculdade de Educação da Unicamp, oferecida pelo professor Sílvio Gallo e que foi planejada e executada por meio de um coletivo de pesquisadores e educadores anarquistas, no ano de 2020. Dos temas e trocas entre os professores e estudantes, para muitos dos quais era a primeira vez que tomavam contato com a educação anarquista, a proposta se estendeu para outras redes de profissionais que têm promovido reflexões libertárias nos espaços acadêmicos e além dos portões universitários. Pensar a educação anarquista entre o passado e o 18 tempo presente foi, portanto, o eixo provocador aos autores deste volume, cujos capítulos entrelaçam experiências e olhares distintos.

O capítulo de abertura, Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária, produzido por Sílvio Gallo, é desde já uma importante contribuição à história da educação anarquista brasileira. Gallo retoma textos produzidos, em 1978, pelo professor universitário e militante anarquista, cuja trajetória ainda merece maior visibilidade. Ao recuperar aspectos da visão de Tragtenberg, que corajosamente apresentou, sob o viés anarquista, críticas à educação em plena ditadura militar – em um texto ele apresentava o educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia e sua revolucionária pedagogia da Escola Moderna, enquanto no outro ele tecia incisivas reflexões críticas à Universidade –, o filósofo Sílvio Gallo articula a história do pensamento educacional libertário no Brasil e a atualiza. Desse modo, a abertura deste livro coloca o leitor diante das possibilidades em se pensar a pertinência da educação libertária contemporaneamente, seja pelo conhecimento de práticas históricas da educação anárquica e seus propositores, como Ferrer e Tragtenberg, seja em pensar o papel da Universidade pública brasileira no século XXI e ao quê/a quem ela tem servido.

Silvério Augusto de Souza retoma historicamente princípios gerais da educação anarquista na perspectiva integral e os problematiza na contemporaneidade. Por uma contribuição política e pedagógica da educação anarquista na escola pública contemporânea parte da provocação: A educação libertária é viável após uma revolução social ou faz parte do processo transformador? Comprometido com a educação pública, o professor traz o debate da educação libertária em confronto com a educação pública como dever do Estado e prossegue para evidenciar a incompatibilidade entre a educação mercantilizada e a integral, em um exercício no qual procura refletir sobre as condições e contradições para o exercício de uma educação libertária, inclusive, tensionadas pela conjuntura da pandemia da Covid-19.

Tássio Acosta se volta para a linguagem do fanzine na interface com a educação. Em Potencialidades dissidenciais no uso de 19 zines e ezines como metodologia para o ensino libertário, o autor percorre as características dos zines, destacada prática cultural de comunicação nos meios anarquistas, atualizando sua importância para o século XXI quando se metamorfoseia nos zines eletrônicos – ezines. Ao olhar as permanências e transformações dos poderes de comunicação e educativo dos zines e ezines, considerando sua estética ampliada pelas possibilidades de construção no espaço da internet, que comporta novos e dinâmicos suportes, Tássio nos provoca a pensar o potencial desta linguagem, cujo processo de criação dialoga intimamente com princípios gerais da educação libertária, no ensino escolar por práticas metodológicas que podem desterritorializar o espaço do currículo prescrito.

Olívia Coelho tematiza um importante aspecto sobre a educação: a infância. Embora sejam sensíveis as lacunas sobre reflexões da temática na história da educação anarquista, o tema tem sido presente com mais frequência nas lentes de pesquisadores e educadores libertários. A abordagem de A Infância convida o Anarquismo para brincar e vice-versa: Práticas libertárias com crianças se faz pela problematização da concepção do anarquismo sobre a criança, sobremaneira pelo viés “especifista”, articulado pela autora com a Sociologia da Infância e a Pedagogia da Escuta e suas experiências de campo.

Estimulado pelas possibilidades da educação anarquista na atualidade, Rodrigo de Almeida contribui com Educação, cinema, autonomia: Diálogos com a história do anarquismo, no qual propõe olhar para essa questão a partir da relação entre o cinema e a anarquia, com destaque para sua interface educativa. O historiador destaca que o conhecimento articulado da história da educação anarquista e da história do cinema pode favorecer o estabelecimento de zonas autônomas temporárias em que se desenvolvam experiências de práticas educativas libertárias.

Em Sobre antropologia e educação libertária: Caminhos para a crítica da representação, Ana Paula Massadar Morel tensiona questões da antropologia na interface com o anarquismo para problematizar a educação libertária diante da alteridade. Tendo como pano de fundo a 20 representação, uma das questões abordada é a viabilidade de práticas pedagógicas horizontais, baseadas na construção de “outro mundo” que não se impusesse a “outros”. Orientada pela crítica à representação política e sua compatibilidade com a crítica à representação ontológica, a autora traz instigantes questões para pensar os limites e possiblidades da educação anarquista em outros campos.

O viés antropológico prossegue com Nathalie Pavelic, que viveu entre os Tupinambá por um ano e traz parte dessa experiência no capítulo “O mundo é uma questão da gente ir ensinando um ao outro”: Educação escolar indígena na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro/Bahia. A autora recupera elementos da trajetória da luta Tupinambá pela implementação de um sistema educacional diferenciado, no qual os Encantados são elementos centrais. A experiência tem requerido uma reorganização constante a partir das disputas do território indígena e o desejo de proporcionar uma educação formal às novas gerações como meio de reversão, positiva, da situação contemporânea. Sem querer reconhecer um olhar essencialmente anarquista naquela comunidade – algo que colocaria a análise na fronteira com o anacronismo -, a autora instiga diálogos com a visão de educação tupinambá em aproximações com práticas libertárias.

Rafael Limongelli coloca uma temática urgente em Derrubar! Queimar! Destruir! Abolição dos castigos e as lutas por liberdade de jovens e crianças. O autor constrói uma análise abolicionista do sistema prisional e o regime dos castigos, com um recorte particular para o encarceramento de crianças e jovens no Brasil Democrático Contemporâneo. Ao percorrer um trajeto teórico-crítico através do pensamento abolicionista penal libertário e dos marcos jurídicopolíticos das práticas punitivistas no Brasil contemporâneo, o autor estabelece a crítica anarquista ao Estado, à Polícia, ao Tribunal, à Prisão e ao Castigo. Limongelli problematiza essa imbricada teia coercitiva e punitivista estatal na interface com a educação a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O psicólogo, professor e terapeuta da “Somaterapia: uma terapia anarquista”, João da Mata, redigiu o capítulo SOMA: 21 pedagogia e terapia libertária do corpo. Para além da sala de aula, essa terapia anarquista é trabalhada como forma de explicitar tanto uma postura ético-política libertária, como também trazer para sua metodologia práticas antiautoritárias. Enquanto processo terapêutico-pedagógico, realizado em grupo, entre dez e quinze pessoas, que tem a duração de até dezoito meses, a SOMA estabelece um permanente atravessamento entre a linguagem verbal e a corporeidade, articulando as perspectivas terapêuticas e pedagógicas quando a dimensão terapêutica abre descobertas pedagógicas e vice-versa.

Caminhando para o final deste “Educação Anarquista: Explorações Contemporâneas”, temos um diálogo internacional no capítulo resultante da parceria entre José Maria Carvalho Ferreira – anarquista português e professor da Universidade de Lisboa -, e a historiadora Juniele Rabêlo de Almeida, em torno da memória e do fazer docente na cultura libertária. A coautoria entre os professores proporcionou o texto Educação anarquista: questões para a construção do acervo de história oral “Professores Libertários”, no qual comentam o trabalho voltado aos professores libertários que integra o projeto Trajetórias Docentes do Laboratório de História Oral e Imagens da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF). A seção apresentada contribui para pensar os dilemas e perspectivas da educação anarquista, tensionando as referências históricas das práticas libertárias dentro de um sistema educacional de pedagogia autoritária e as construções do fazer docente.

Por fim, convergente à preocupação com as bases da filosofia anarquista no fazer docente, o livro é encerrado com Diálogos libertários: Como me tornei uma educadora libertária – por Carol Gomes. Em uma reflexão no formato de entrevista dialogada, a geógrafa Elise Dessotti conversa com Ana Carolina Gomes, professora do ensino infantil em Campinas e que tem atuado como monitora das disciplinas sobre anarquia ofertadas pelo professor Sílvio Gallo, na Faculdade de Educação da Unicamp. A conversa levanta pontos sobre sua construção, enquanto torna-se professora na cultura libertária entre a universidade e o ensino infantil, e as percepções 22 de como estudantes e pesquisadores têm acompanhado esforços de inserção da temática anarquista num curso universitário.

Convidamos, pois, as leitoras e os leitores a percorrer as páginas seguintes deste Educação Anarquista: Explorações Contemporâneas inspirados por Bakunin, considerando a educação, em suas múltiplas possibilidades, como essencial para a transformação da sociedade, sendo a mudança operada a partir do reconhecimento da realidade para desafiá-la, tomá-la pelas mãos e pelas ideias para refazê-la, não em futuro distante, mas no presente contínuo: “Depositemos nossa confiança no eterno espírito que destrói e aniquila apenas porque é a insondável e infinitamente criativa origem da vida. A paixão por destruir é também uma paixão por construir!” (Bakunin apud Woodcock, 2007, p.12).

Referências

BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda; Ed. Portuguesa, 1985, v.5: Antropos-Homem.

FAURE, Sébastien. A Colmeia. São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2015.

FERRER i GUARDIA, Francisco. A Escola Moderna. São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2014. GALLO, Sílvio. Pedagogia do Risco – experiências anarquistas em educação. Campinas: Papirus, 1995. GALLO, Silvio. Pedagogia libertária: princípios políticosfilosóficos. In: PEY, Maria Oly (Org.). Educação Libertária: textos de um seminário. Rio de Janeiro/Florianópolis: Achieamé/ Movimento, 1996.

GOLDMAN, Emma. A criança e seus inimigos. In: GOLDMAN, Emma. Educação. Biblioteca Terra Livre, 2019.

KASSICK, Clóvis N. A ex-cola libertária. Rio de Janeiro: Achiamé, 2004. MORIYÓN, Félix García. Educação Anarquista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

PASSETTI, Edson; AUGUSTO, Acácio. Anarquismos e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? 2.ed. Lisboa: Estampa, 1975.

VIZZINI, Beniamino. La pedagogia libertaria come antipedagogia. In: Umanitá Nova, nº 19, ano 69, Livorno, maggio/1989. WOODCOCK, George. (Org.). Os grandes escritos anarquistas. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 1986.

WOODCOCK, George. História das ideias anarquistas. 2v. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007.

Notas de rodapé

[1] Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Educação pela Unicamp. Livre docente em Filosofia da Educação. Bolsista de produtividade CNPq. Email: [email protected]

[2] Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Educação e Mestre em História e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Equipe de coordenação do Laboratório de Ensino de História LEH/UFF. Email: [email protected]

[3] Em 21 de agosto de 2020 o STF julgou inconstitucional a lei alagoana conhecida como “lei da mordaça aos professores”. A expectativa é de que a sentença se estenda a outras proposições coercitivas semelhantes.

[4] Para mais informações sobre a experimentação pedagógica levada a cabo por Paul Robin na efetivação prática da ideia de uma educação integral, durante os 14 anos (1880-1894) em que administrou o Orfanato Prévost em Cempuis, sugerimos a leitura de textos do próprio Robin disponíveis em Educação Libertária (Moriyón, 1989) e o capítulo “Paul Robin: fundamentos da educação integral” do livro Pedagogia do Risco (Gallo, 1995).

[5] Sobre a Escola Moderna de Barcelona, ver a tradução brasileira da obra de Francisco Ferrer (Ferrer, 2014). Sugerimos também a leitura de A Colmeia (Faure, 2015), narrativa sobre a comunidade-escola La Ruche por seu próprio criador, Sébastien Faure.

[6] A Escola Moderna de Barcelona foi fechada (e destruída) pelo governo espanhol, sob a alegação de que Francisco Ferrer havia sido o responsável intelectual por um malogrado ataque a bomba contra o rei da Espanha. Não é de se estranhar que anos depois a Escola Moderna nº 1 de São Paulo também seria fechada em situação similar. Um atentado a bomba foi forjado pela polícia e militantes anarquistas ligados à escola foram acusados e incriminados e, sob tal alegação, a escola foi fechada pelo governo paulista.

[7] Para conhecer esta experimentação educacional anarquista, sugerimos o livro A ex-cola libertária (Kassick, 2004).

Ano de lançamento

2021

ISBN

978-65-5869-443-4

ISBN [e-book]

978-65-5869-442-7

Número de páginas

278

Organização

Rodrigo de Almeida Ferreira, Sílvio Gallo

Formato