P de professor

Jorge Larrosa, Karen Rechia

R$75.00

INTRODUÇÃO

Karen.
Deveríamos apresentar o que o leitor tem em mãos. Começas tu?

Jorge.
Começo eu. Conheci a Karen em setembro de 2014, no Rio de Janeiro, no Colóquio Internacional de Filosofia da Educação que vem organizando bianualmente o grupo de Walter Kohan, na UERJ. Apresentou-nos Carlos Skliar; ela como professora de ensino básico e médio que, para minha surpresa, mostrou seu interesse não tanto pelas minhas ideias ou meus escritos, mas por meu trabalho de professor, por meus procedimentos ou meus modos de fazer como professor de universidade. Disse-lhe disse que não era fácil falar dessas coisas em abstrato, que não se tratava exatamente de metodologias, porém ela poderia vir a Barcelona, quando quisesse, para ver por si mesma, e a convidei a colaborar comigo nas matérias de que daria aulas a partir de fevereiro do ano seguinte. Ao cabo de pouco tempo, novamente para minha surpresa, escreveu-me dizendo que pediria uma licença de três meses na escola em que trabalha e que viria a Barcelona, sem bolsa de pesquisa nem ajuda de nenhum tipo, com seus próprios recursos, para trabalhar comigo.
Assim o fez e, entre fevereiro e junho de 2015, começou a assistir todas minhas aulas. Posto que trabalhava (e trabalho) nos primeiros cursos da graduação e com grupos muito numerosos de estudantes, imediatamente lhe propus que se encarregasse de tutorias, isto é, das reuniões periódicas com os grupos formados pelos alunos para fazer o trabalho de campo e para elaborar o trabalho final das disciplinas. Karen frequentava as aulas, observava, tomava notas, reunia-se com os alunos, seguia tomando notas, acompanhava-os em algumas de suas saídas, e também tomava notas. Seu caderno se converteu em uma espécie de arquivo ou de memória daquilo que estávamos fazendo. Ademais, quase todas as sextas-feiras, depois da aula, passeávamos um pouco e comentávamos as incidências da semana. Nessas conversações Karen fazia perguntas e exigia justificações. Seus comentários, às vezes aparentemente ingênuos, às vezes tremendamente incisivos, me obrigavam a explicitar critérios, a dar razões e, em definitiva, a pensar em coisas sobre as quais nunca havia pensado. Digamos que me tornou consciente de minha forma de ser professor, de minha maneira de habitar o ofício, como eu nunca antes havia feito.
Pouco a pouco foi emergindo uma personagem, o Jorge Larrosa professor, cujas características eram cada vez mais nítidas. Além disso, talvez pela leitura de alguns textos de Jan Masschelein e de Maarten Simons sobre a escola e sobre o professor (sendo a universalidade uma espécie de escola e sendo o professor universitário apenas um tipo de professor), a reflexão sobre o que significa isso de ser professor estava começando a ocupar um lugar importante entre minhas próprias preocupações, mais ainda quando, por minha própria idade e minha escassa capacidade (e vontade) de adaptação aos novos modos universitários, tinha (e tenho) a sensação de que algumas de minhas formas de fazer as coisas começam a ser concebidas como excêntricas, quando não são entendidas como obsoletas e reacionárias. Ver a mim mesmo com os olhos de Karen ou, através de Karen, com os olhos de meus alunos, não deixava de ter certo interesse e, em qualquer caso, comecei a ver a essa personagem com certa distância irônica, com certa compaixão e, porque não dizê-lo, com certa ternura. Karen não deixava de tomar notas e, em algum momento, começou a perceber (e a dizer) que talvez o que estávamos fazendo pudesse ter algum valor na medida em que mostrava, de uma maneira bem concreta, uma maneira peculiar de entender o ofício em que outras pessoas poderiam se interessar.
No ano seguinte, em maio de 2016, convidei Karen para a apresentação dos trabalhos finais dos alunos do curso seguinte ao que ela havia assistido (na realidade, também queria que ela visse algumas mudanças em meus próprios planejamentos), e foi então que pensamos na possibilidade de fazer algo com seu caderno de anotações e com a memória daquilo que havia sido esse semestre de 2015. E nos colocamos a trabalhar.

Karen.
Fomos apresentados em 2014, mas conheci Jorge Larrosa, o filósofo da educação e escritor, em 2006, quando uma amiga professora me passou o texto “Agamenon e seu porqueiro”. Professores de História geralmente não simpatizam com os escritos na área da educação. Talvez haja um quê de arrogância de nossa parte, mas é fato que desconfiamos. Como Joseane Zimermann é uma excelente professora de história e querida amiga, cedi. Fui capturada já pela epígrafe do texto: “A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou seu porqueiro. Agamenon: De acordo. O porqueiro: não me convence”. Certa da minha captura, Joseane dá a arremetida final e me presenteia com Pedagogia Profana. A partir daí alguns textos foram garimpados e o interesse em compreender uma outra educação, ou uma outra forma de estar na educação, aumentava.
A vida segue e, mesmo sabendo que você era uma celebridade em terras brasileiras, nunca havia assistido a uma palestra sua. Como já disse, nós, professores de história, somos assim, um tanto desconfiados. Já Carlos Skliar conheci no COLE, em Campinas, dois meses antes. No colóquio do Rio de Janeiro, percebeu que eu estava com algumas ideias e várias inquietações, e gentilmente me apresentou a você. Eu não sabia exatamente o que falar, pois eu não tinha um tema de pesquisa acadêmica, não tinha bolsa de pós-doutorado, relação com agência de fomento e grupos de pesquisa em educação, tudo isto com o qual as pessoas costumam se apresentar. Mas eu sempre tive um interesse até obsessivo pelos modos, pelas maneiras de fazer as coisas. Isso vem do avô, marceneiro-engenheiro-escritor, mas que sem dúvida foi aguçado por vários escritos seus. No colóquio, adquiri o livro Encontrar Escola, com um texto seu que trouxe à tona novamente a curiosidade sobre estes “modos de fazer” na educação.
Diante deste interesse genuíno, mas sem nenhuma contrapartida, você disse, “venha, veja e faça”. E na situação em que me encontrava, com recursos próprios e tão somente porque tive a ajuda generosa dos colegas da disciplina de História do Colégio de Aplicação, pude partir para Barcelona. A história em Barcelona, que contextualiza este dicionário, praticamente já foi contada por você , mas algumas observações podem ser interessantes.
Foi muito difícil separar o Larrosa escritor-filósofo-palestrante do professor. Uma das partes árduas foi perceber que suas centenas de alunos não sabiam quem era Jorge Larrosa, para além de ser seu professor, mais um entre vários. Outra questão era lidar com aquilo que eu mesma fazia: como olhar para alguém que tinha o mesmo ofício que eu, como “hacer lucir” este ordinário? Assim, o caderno de notas passa a ser este lugar que dá sentido às coisas vividas, às aulas assistidas, às tutorias, à intermediação com os estudantes, às saídas de campo, às leituras e… aos modos de fazer do professor.
As leituras de Masschelein e Simons também foram fundamentais, e este personagem, como você disse a pouco, foi tomando forma e sentido para mim como professora e, pensei, talvez para outros professores também. Não que o escritor-filósofo-palestrante Jorge Larrosa tenha deixado de ser interessante, mas ele estava em outro lugar, e o professor e seu ofício revelavam algo que ainda não havia sido mostrado, algo que poderia ser “posto na mesa” para refletir, experimentar e re-inventar, algo que me parecia da ordem do infinito naquele momento, algo de que valeria a pena falar.

Jorge.
Gostaria de dizer algo sobre essa distância sobre o Jorge Larrosa escritor-conferencista e o Jorge Larrosa professor, que é o que lhe interessava. E talvez tu possas adicionar algo sobre como esse dicionário tem traços de conversação entre professores, isso que dizes de que nosso trabalho tinha sentido também para ti “como professora”, e isso que dizes de que estavas olhando “a alguém que tem o mesmo ofício que tu”.
Estou lendo alguns professores universitários que discutem o que quer dizer ser professor hoje em dia e que experimentam, como eu, certo mal estar com os novos rumos da universidade. E o que tenho notado é que quase nunca estabelecem uma relação entre seu trabalho de escritores e seu trabalho de professores, quando é claro que cada uma dessas atividades é condição de possibilidade da outra. O que quase nunca se reconhece é que o ofício de professor lhes dá tempo e espaço para ler e escrever ou, dito de outra maneira, que é aí, no trabalho cotidiano na universidade, nos cursos que se repetem e se renovam a cada ano, nesse hábito de ler e reler em público que se faz a cada dia em uma sala de aula, nesse trabalho ordinário e sem glamour, em que vão se formando e destilando as ideias, as palavras, os modos da escritura em definitivo, que logo se transformarão em livros e conferências. E parece-me que é como se essa cotidianidade ordinária em que consiste o “fazer do professor” fosse algo do que nos dá um pouco de vergonha falar quando nos “fazemos de intelectuais”, escrevendo ou dando conferências, ou seja, colocando ideias e palavras no espaço público, como se essas ideias e essas palavras surgissem independentemente de qualquer contexto material e, em definitivo, profissional.
Marten Simons e Jan Masschelein fazem uma consideração interessante sobre as possíveis razões de que os intelectuais não somente se esqueceram de que frequentaram as escolas, mas também frequentemente ignoram que seu trabalho cotidiano é como professores. E eu tenho a impressão de que isso poderia ser consequência do idealismo que atravessa nossas maneiras de entender o trabalho intelectual, mas também da pretensão de construir um relato no qual o intelectual apareça como um ser “que faz a si mesmo”, dialogando apenas com a biblioteca e com outros acadêmicos como ele.
O que quero dizer é que exercer o papel de professor e escrever livros ou dar conferências são, para mim, aspectos separados e relacionados do mesmo ofício. Por mais que seja verdade, como tu apontas, que o “aspecto professor” fica muitas vezes escurecido e invisibilizado pelo “aspecto escritor” e o contrário. Na maioria dos casos, os leitores do escritor não sabem nada do professor, os alunos do professor não sabem nada do escritor. Contudo, o que é mais estranho é que, muitas vezes, o professor que escreve, quando se apresenta como escritor, como autor, como “intelectual”, como conferencista, não reconhece que deve sua escrita às condições econômicas, materiais e sociais que a tornam possível, isto é, em meu caso, à universidade na qual trabalho em que tu me acompanhaste durante esse semestre de 2015 que está na base desse dicionário que estamos apresentando (minha dedicatória desse dicionário se refere ao que tem sido o meu departamento durante mais de trinta anos com o objetivo de agradecer às condições materiais e não somente materiais em que pude permitir-me o luxo de ser professor e também, desde então, escritor e palestrante). Igualmente, essa separação entre o escritor e o professor se dá de maneira independente de que alguns dos professores convertam em matéria de ensino os assuntos sobre os quais escrevem. Esse não é, em geral, o meu caso (como desenvolvemos na palavra “experiência” desse dicionário), mas isso não significa que meu trabalho de professor e meu trabalho de escritor-conferencista não sejam duas caras da mesma dedicação, do mesmo exercício, do mesmo estudo.
Mas talvez tu possas dizer algo sobre a maneira em que esse semestre (e a composição desse dicionário) colocou em jogo também teu ofício de professora. Ou, quem sabe, que possas dizer sobre como vês tua própria posição em todo esse processo que estamos contando.

Karen.
Continuo para falar um pouco deste lugar que assumi, ou fui obrigada a definir, nesta experiência contigo. De saída, a clareza e objetividade com as quais cheguei à Universidade de Barcelona ruíram nas duas primeiras semanas. Tu te sentias exigido com minhas perguntas e tratava de respodê-las nas caminhadas, nas quais conversávamos, pela montanha. No entanto elas serviam mais a mim que, desesperada, procurava qualquer “galho de cipreste” no qual me agarrar. Se te levei a pensar sobre a tua forma de ser professor, eu mesma já não sabia que forma assumir neste jogo.
Não era estudante, posto que não estava na mesma posição dos teus alunos. Não precisava fazer avaliações, mas, ao mesmo tempo, não poderia exigir explicações, à miúde, do mestre. Como pesquisadora, haveria um tema a desenvolver, e não era oficialmente o que estava posto. Não havia um método de coleta de dados, tampouco de observação, um recorte, nada que se assemelhasse a uma investigação científica.
Eu não era professora visitante, não era sua colega, no entanto, era tutora de inúmeros grupos de estudantes. Tudo ficava mais difícil quando você perguntava quais eram minhas ideias sobre seus protocolos e quais eram as minhas sugestões. Era assustadora a ambiguidade que se instaurava na minha cabeça: digo que não entendi os protocolos? (mas isto me colocava numa situação de professora); digo que não posso dar ideias para alguém que se chama Jorge Larrosa? (mas isto denotaria um certo fanatismo); digo que fui ali justamente para aprender o assunto? (mas eu não tinha tema de pesquisa); digo que eu só estou ali para ajudar? (mas eu não era exatamente uma colaboradora). Então, depois de duas semanas, a pergunta era: o que faço eu aqui?
Uma constatação passou a (também) povoar meus pensamentos: eu só sei que sou professora… Fui me dando conta de que só sabia fazer “aquilo”, ou de que “aquilo” ia se tornando mais visível à medida que participava ou, melhor, “ad-mirava” suas aulas.
Ali você se mostrava professor, sem nada de extraordinário, mas era justamente assim que o ofício se revelava de uma maneira extraordinária. Talvez porque, como você mesmo disse, quem conhece o escritor não sabe nada do professor e vice-versa. Todavia, a experiência de estar ali, de insistir em estar ali, me fez ver que o escritor era feito da matéria-prima deste professor, das maneiras, dos gestos deste, que generosamente me deixou acompanhá-lo.
E como tu já falaste, enunciar as ideias que se tem sobre o ofício de professor é muito mais fácil do que mostrá-las no seu próprio exercício. Por isso o professor tem esse quê de generosidade, quando abre a porta da sua sala para o estagiário na formação docente inicial, para o estudante de psicologia que quer apenas fazer observações, para o professor universitário que envia o graduando para aplicar alguma experiência ou questionário, para o grupo das tecnologias da informação que precisa filmar uma “aula tradicional”, para o pesquisador “participante”…
Só para acrescentar mais uma duplicidade às já colocadas por ti, quando um professor entra na pós-graduação, muitas vezes se apresenta como doutorando ou mestrando nos eventos científicos. No entanto, apresentar-se como professor deveria ser uma distinção, um pronome de tratamento, algo como professor doutorando, professor escritor, professor palestrante, professor artista.

Jorge.
Parece então que este dicionário tem que ver com mostrar o Jorge Larrosa em sua maneira de exercer (e de pensar) o ofício de ser professor, sempre visto a partir das notas do caderno de Karen (uma espécie de memória exaustiva das aulas e de tudo que nos rodeou), das recordações de nossas conversas em relação ao que ia acontecendo nesse semestre de 2015, e também da inevitável construção retórica que é todo exercício de escritura.
Talvez seja bom dizer aqui que duvidamos muito antes, durante e depois da realização desse trabalho. Que eu saiba, e precisamente pela especificidade desse dicionário em relação a outros já existentes, sobre o que talvez logo queiras dizer alguma coisa, este é um exercício que não tem antecedentes. Por um lado, creio que se trata de um texto muito arriscado, muito exposto, no sentido em que nos mostra em um momento concreto e de alguma maneira irrepetível, em condições de trabalho muito concretas, tomando decisões também muito concretas, às vezes com muitas dúvidas, com muitas inseguranças e que nem sempre são fáceis de justificar. E, por isso, decisões que muitas vezes, na prática, demonstram que não foram as mais adequadas. É muito mais fácil, e menos exposto, enunciar as ideias que se tem sobre o ofício de professor que explicitá-las ao mesmo tempo em quem são mostradas em relação à contingência concreta e em presença de seu próprio exercício.
Por outro lado, este é um texto que, pelo modo como está organizado, coloca algumas dificuldades no sentido de que permite muitas formas de leitura. É verdade que nunca se pode controlar o leitor, o que vai fazer o leitor, se vai ler seguindo a linearidade proposta pelo texto ou saltando daqui para lá, avançando e retrocedendo ao sabor de seu capricho. Entretanto, também é verdade que neste caso o controle é muito menor posto que o que poderia ser uma ordem sistemática foi de antemão quebrado pela desordem arbitrária do alfabeto.
Mais adiante diremos algo sobre o modo como organizamos isso, mas digamos já que a organização alfabética pela qual decidimos torna inevitáveis algumas (quem sabe muitas) repetições, ao mesmo tempo em que permite distintos itinerários de leitura (enquanto há palavras que levam a outras palavras, que remetem a outras palavras, que estão relacionadas a outras palavras). Por outra parte, e justamente por esse possível grau de dificuldade de leitura, a forma do dicionário que escolhemos não é assim somente “para fazer bonito”, mas porque tem que ver, sobretudo, com um lugar que os hipotéticos leitores possam ocupar parecido ao que foi o nosso durante esse semestre, isto é, que tenham a sensação de ver, mas sem ver o todo, que as coisas nas quais se está e nas quais se pensa não estão separadas nem ordenadas nem hierarquizadas, que se dão todas ao mesmo tempo, que uma ideia (ou uma palavra, ou frase, ou tema) leva a outra sem que uma seja causa ou consequência ou sua derivação, que o mundo que se habita se dá com certa opacidade e com certa confusão, certa desordem, certa mistura, de modo que qualquer tentativa de ordenação é tão arbitrária como qualquer outra.
Quero dizer também que não entendemos a personagem que aqui vamos construir como modelo de nada e que, desde logo, não nos mova nenhum ânimo de exemplificar e, muito menos, de polemizar. De fato, agora, três anos mais tarde desse semestre que compartilhamos, não faço as mesmas coisas nem da mesma maneira. O que vamos contar aqui não é o Jorge Larrosa professor, assim em geral, mas como se fez professor em um semestre concreto, com alunos concretos e com um repertório concreto de limites e de possibilidades que, ademais, foram se revelando durante o curso. Por isso, creio, o importante não é que os supostos leitores podem às vezes reconhecer-se e às vezes não nessa personagem, o melhor seria tomá-lo como pretexto para pensar, a seu modo, que é isso do ofício do professor, como cada um o vive, exerce, encarna de um modo sempre singular e contingente.
Nesse sentido, o que fazemos aqui é um gesto de exposição, de tornar pública, escrevendo-a, dando a ler, mostrando-a, o que foi nossa experiência compartilhada durante esse semestre. Não se trata de enunciar uma posição, nem uma o-posição, nem muito menos uma im-posição. Trata-se, creio, de algo parecido com o que te convidei a ver por ti mesma minhas “maneiras de fazer as coisas” (esse gesto de abrir as portas da minha sala de aula). E também esse gesto de tornar esse semestre compartilhado um assunto de conversação que nos permitisse, a ambos, pensar o que não havíamos pensado, o que não houvéssemos sido capazes de pensar a não ser por esse exercício feito em comum. Para nós, escrever isto se tornou um exercício (de memória, de conversação, de escritura, de pensamento) que tem servido por si mesmo. E nos parece que o suposto leitor pode tomá-lo também como ponto de partida, se quiser, para seu próprio exercício, se acreditar que pode ser de algum proveito.
Por último, e para voltar a isso da “personagem” ou das “personagens” que aqui se constroem, gostaria de dizer que todo o sujeito é uma composição de forças, nada mais e nada menos, que compõe como mundo uma maneira de “fazer o mundo” no lugar e no tempo concreto que lhe toca viver e também, desse logo, em relação com tudo que “há ali” e com o que, de algum modo, se conecta, ou se sintoniza, ou se compõe. Nosso amigo Antonio Rodríguez, depois de ter lido uma versão inacabada deste texto e questionado sobre como soavam as vozes do professor e de sua companheira no exercício, respondeu de uma maneira que eu não seria capaz de dizer melhor:

Não parece um “retrato pessoal” do docente Jorge Larrosa, mas algo que aparece precisamente porque ele estava ali, naquele momento, na companhia curiosa e delicada da professora Karen Rechia. Tocou a ele estar ali e fazer a mediação, dar forma e conduzir uma maneira de ler o mundo e de fazer o mundo. Sua figura não é outra coisa senão um catálogo de gestos (quase uma “fenomenologia” gestual), ferramentas, dispositivos, que poderiam ser encarnados em outros sujeitos, porém que recorreram Jorge e Karen por um momento, para fazer um tempo e reservar um espaço, para dar a ver e a viver um pedaço de realidade que em vocês tomou corpo e palavra.

Mas supostamente devamos esclarecer alguns aspectos sobre a forma que demos a este trabalho. Começas tu, agora?

Karen.
Certo, então vamos ver. Após algumas conversações, chegamos à forma dicionário, posto que depois de termos decidido que o diálogo seria em torno de algumas palavras que se adensavam nas anotações do caderno, precisávamos ordená-las. Um dicionário comporta um alfabeto, que é, portanto, uma forma bem escolar de ensinar a ler e a escrever. Como contem palavras e suas definições, sempre em ordem alfabética, pensamos que poderia, para além de um conteúdo, expressar uma forma. Isso é importante, porque produz uma espécie de duplo com nossos propósitos.
Explicando melhor: ainda que elas estejam misturadas pela ordem alfabética, há três tipos de palavras neste dicionário. O primeiro grupo está formado pelo que chamamos de não-palavras, isto é, pelas palavras que o professor não usa ou não deveria usar para falar do seu ofício, posto que são palavras que fazem parte de uma certa colonização da linguagem pedagógica. Essas não-palavras são aluno, aprendizagem, qualidade, comunicação, informação, pesquisa, metodologia, objetivos, profissionalismo e utilidade.
O segundo grupo de palavras é referente aos modos de fazer, ao ofício de professor.
E o terceiro grupo, formado por palavras referentes às disciplinas ministradas pelo professor Larrosa naquele momento, no primeiro semestre de 2015.
Em relação a estas palavras, também é importante dizer ao leitor da sua seleção e sistematização. Para cada disciplina escolhemos cinco palavras. Assim:
Em Arte e Cultura na Educação Social temos lixo, garis, catadores, distrito e comum.
Em Sociologia da Educação encontramos pobreza, encomenda, zumbi, shopping e ricos.
E em Antropologia Cultural escolhemos transmissão, estupidez, ogro, ruína e refúgio.
Além disso, cada uma delas diz respeito a um aspecto da disciplina: operando um assunto, um conceito, um filme, um texto, um exercício.
Dessa forma, o assunto de cada disciplina é contemplado nas palavras lixo, pobreza e transmissão.
Dentre os vários textos indicados nas três disciplinas, destacamos um para comentar em garis, encomenda e estupidez, do mesmo modo que um filme para catadores, zumbi e ogro.
As saídas de campo são descritas em distrito, shopping e ruína e, por fim, comentamos três palavras-eixo em cada uma delas, como comum, ricos e refúgio.
No entanto, elas só estão presentes porque põe algo “sobre a mesa”, porque estão a serviço de outras como artefatos, atenção, caderno, curso, disciplina, experiência, fracasso, literalidade, matéria, pensamento, tempo, etc.. Porque fazem falar estas outras que remetem às maneiras de fazer do professor, às suas tecnologias, ao exercício da autoridade, ao estudo, à repetição, à criação de interesses, aos seus gestos pedagógicos. Porque juntas dizem respeito à importância do ofício e ao direito à presença do professor em sala de aula.

Jorge.
Deveríamos advertir que nas palavras que tem a ver com as disciplinas incluímos transcrições dos programas, das instruções para os exercícios e dos protocolos para as saídas a campo. Isso as torna, às vezes, prolixas, mas acreditamos que a honestidade de um trabalho como este exige mostrar os procedimentos em seus detalhes. Algo que seguramente somente interessará a alguns leitores e que outros poderão simplesmente não ler, usando sua soberania de leitores.
Talvez devêssemos dizer também que decidimos não dar a referência dos textos ou dos filmes de que falamos, não dar a referência de citações, não fazer uma bibliografia final, não usar notas de rodapé. Cremos que o gênero de escritura que usamos não permite nem autoriza isso. Acreditamos também (sobretudo nas palavras que tem que ver com a bibliografia e a filmografia concretas que se manejou em cada uma das disciplinas), que se trata tão somente de que o leitor tenha uma ideia da forma de trabalhar (ainda que para isso seja inevitável se referir ao conteúdo). E, também, preferimos que o texto mantenha a textura de uma conversação, que conserve algo desse estilo conversacional que atravessou, desde o princípio, a realização deste exercício e no qual, portanto, falávamos dos textos e dos filmes, mas não citávamos nem o ano de edição nem a página.
Quase para terminar, talvez pudesse dizer alguma coisa sobre a diferença entre este dicionário e o abecedário que gravei em 2016, na Cidade das Artes do Rio de Janeiro (por iniciativa de Adriana Fresquet da Universidade Federal do Rio de Janeiro), que se intitula “O de Ofício (de professor)” e pode ser encontrado no canal do CINEAD/LECAV na plataforma youtube.

Karen.
A gravação com a Adriana foi feita em meio às atividades do Elogio da Escola, o evento que tomou forma em Florianópolis e cujas discussões se centraram na escola, em suas formas e seus gestos, ou os gestos dos sujeitos que a compõem. Paralelamente continuávamos lidando com as palavras de nosso dicionário, que neste momento ainda se chamava abecedário. Para este convite da Adriana, algumas palavras escolhidas foram as mesmas; no entanto, as formas como elas foram dispostas temporal e espacialmente, em sua forma audiovisual, bem como sua composição, soaram e soam diferentes deste dicionário. E aquele trabalho ficou lindo, não tenho dúvida.
Arrisco dizer que, aqui, há algo que funciona mais como diálogo, não tanto como explanação (como no abecedário de Fresquet), e nem como entrevista. Talvez, algo neste jogo soe como o Abecedário de Deleuze, em que o papel de Claire Parnet é menos o de entrevistadora e mais o de quem possibilita este diálogo. Creio que se pode dizer que empreendemos, ou conquistamos, certa horizontalidade neste processo. Como lá, há pequenas diferenças entre eles, não discordâncias, e o que ali está em jogo é a filosofia; aqui, a educação, mais especificamente o que tange a um professor e seu curso. E a propósito do tema, não encontrei nada que se aproximasse ou correspondesse a este trabalho que empreendemos.
Num certo momento, você sugeriu que eu escrevesse algo que desse um pouco de sentido a esta experiência, uma espécie de artigo, de ensaio, algo assim. Mas ao tentar empreender esta ideia, logo percebi que teria de pensar o tipo de registro a ser efetuado. O caderno funcionava como este laboratório. Tentativas de anotar e classificar tanto o conteúdo das aulas como a sua composição, o jeito do professor e suas palavras. Digo isso porque foi aí, neste exercício, que se complexificaram os caminhos a tomar, mas, ao mesmo tempo, o personagem professor foi emergindo. E com ele a certeza de que as formas de fazer, a relação com as materialidades, com as tecnologias da aula, a noção de continuidade dada por cada curso, poderia interessar a alguém para além de mim mesma e de meu caderno.
A forma como fui construindo meu caderno e entendendo minha posição, lentamente esvaziou um possível caráter de entrevistadora que pudesse assumir. Ao mesmo tempo este trabalho foi adquirindo sentido para mim como professora, olhando e registrando alguém que tinha o mesmo oficio que eu. Portanto, este dicionário tem algo de conversa entre professores, de alguém que chama o outro para jogar um certo jogo.
E a lista de palavras, tal qual na Odisseia, às vezes seguia contra os deuses ou protegida por eles. Adormeceram na ilha da ninfa Calypso, foram sopradas para longe por Éolo e transformadas em porcos pela bruxa Circe. Aprisionadas pelo ciclope, tiveram que ser resgatadas da caverna, mas de volta ao mar, tapamos seus ouvidos para que não fossem atraídas pelo canto das sereias. Não me espanta a demora em chegar a Ítaca, mal sabendo se ali iriam encontrar seu lugar. E o caderno? A própria nau de Ulisses e seus tripulantes.
Por tudo isso, creio que vivemos uma situação ímpar. Possivelmente única, provavelmente irrepetível e, quem sabe, de algum interesse.

Jorge.
Direi, para terminar, que este dicionário estava pensado para ser a terceira parte de um livro muito maior que finalmente, por motivos editoriais (basicamente de extensão) foi dividido em dois. Desde então, creio que o dicionário tem sentido por si mesmo, mas penso que deveria ser lido junto a esse outro livro intitulado Esperando não se sabe o que: sobre o ofício de professor, que o que o amplia e complementa (com outras elaborações teóricas, outra bibliografia e outros registros de escritura) e que contém um curso sobre o ofício desde o ponto de vista do artesanato (das mãos e das maneiras), um exercício que culmina em elogio muito pessoal da sala de aula (de elogios e elegias), uma série de diversos países da América Latina em 2017 (de incidências e coincidências).
E parece-me que somente nos resta agradecer os comentários e sugestões das pessoas às quais convidamos à leitura de alguma das versões ainda incompletas deste dicionário e, sobretudo, agradecer-lhes por nos dar o ânimo e a confiança de que precisávamos para terminá-lo. Eles são Antonio Rodríguez, Daniel Gómez e Fernando Leocino da Silva.

Ano de lançamento

2018

ISBN

978-85-7993-534-3

Número de páginas

532

Autoria

Jorge Larrosa, Karen Rechia

Formato