Dialogando sobre o diálogo na perspectiva bakhitiniana

Augusto Ponzio

R$50.00

DIÁLOGOS PONZIANOS…

Augusto Ponzi

Encontros com palavras outras Uma obra explode as fronteiras de seu tempo, ela vive através dos séculos, dito de outra forma, na grande temporalidade, e, fazendo isso não é raro que essa vida (e é sempre verdadeira para uma grande obra) resulte mais intensa e mais plena que no tempo de sua contemporaneidade [Mikhail Bakhtin]. Esta epígrafe retrata bem a amplitude das ideias e da obra de Bakhtin e desvela, ainda, a concretude com que Ponzio vive e vivifica o pensamento bakhtiniano. Isto pode ser visto e sentido em várias de suas obras e, bastante intensamente nesta, quando ele busca pensar e compreender o diálogo em matizes diversos. Tons que foram se multiplicando e formaram muitas outras aquarelas de pensamentos, a partir de cada um que compartilhou este projeto de escrita sobre o diálogo de/com Ponzio.

Longe de uma abordagem exegética, Ponzio compartilha conosco, leitores/interlocutores, reflexões imanentes de conceitos-chave do pensamento bakhtiniano, conceitos vivificados nos diferentes diálogos sobre diálogos, postos como questões/elementos a serem (re)pensados, (re)elaborados, ampliados mediante a escuta responsiva, a não indiferença, a responsabilidade de cada um de nós leitores/ interlocutores. Não se trata, obviamente, de uma recusa à teoria, mas da recusa de reduzir o ato singular às simplificações de um modelo teórico, fechado em si mesmo. No fechamento do círculo teórico, não invadido pelo mundo concreto da vida, a redução dos aspectos de fatualidade e eventicidade de cada ato para reencontrar o modelo abstrato faz de cada unicidade uma repetição do predeterminado, um exemplar descarnado e exangue. Desbastado, o ato ético, estético, cognitivo, perde sua concretude e sua historicidade (GERALDI, 2004, p. 84).

Trabalhamos, na disciplina de mestrado “Tópicos de linguagem: o diálogo como prática da escuta”, no Programa de Pós-graduação em Linguística, da UFSCar, esses textos de Augusto Ponzio. E nosso desafio nesta fala é dar visibilidade ao vivido, aos jogos e relações que estiveram em voga no grupo e nas leituras; e, principalmente, as novas nuanças – nascentes de ideias – que, geradoras de grande inquietude, nos salvam da certeza e da busca de uma verdade única e maneira repetente de ver e sentir a vida. Caminhos percorridos até o encontro com a palavra outra de Bakhtin, Ponzio, Lévinas, Sócrates, Platão, Mary Sellani, Massimo Bonfantini, Susan Petrilli, Wladimir Krysinski e do próprio grupo.

A palavra outra foi constituindo cada um de nós, modificando o nosso olhar sobre o outro e sobre nós mesmos, nos levando a relacionar Bakhtin e o pensamento de Ponzio com nossas pesquisas, o que nos apontou um caminho didático e metodológico constituído pelo exercício da escuta. Escuta marcada pela alteridade, na qual a linguagem é mediadora e constituidora das concepções de mundo, da existência do sujeito (de nós) no mundo, marcada pelo dialogismo, pela polifonia e pela polissemia, onde cada um se constitui de várias vozes, e todo discurso é um discurso citado. Para Bakhtin (1988, p. 147) o discurso, a enunciação, o texto se destina a um Outro que a apreende que, no entanto, “… não é um ser mudo, privado de palavra, mas ao contrário, um ser cheio de palavras interiores”; o que nos indica que a enunciação é sempre mediatizada por um discurso interior posto em relação com um discurso exterior, num processo de compreensão da palavra-alheia até que se transforme em palavra-própria; o que só é possível dentro de uma relação de escuta, num silêncio respondente ao Outro, quando o sujeito experimenta a enunciação do Outro em sua consciência e responde, “ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa muda ou como ato-resposta baseado em determinada compreensão” (1992, p.294).
Em seus modos de funcionamento discursivo, a linguagem oferece, desde sempre, um exemplo inigualável de articulação entre o dado e o a ser determinado no evento particular. O enunciado abstraído de sua enunciação perde os laços que o ligam à vida: palavra morta que somente recebe novo sopro vivificador quando reintroduzida em novo processo de enunciação. Os sulcos abertos no ar pela palavra enunciada não levam aos ouvidos sentidos prontos e acabados: levam impulsos à compreensão participativa que engloba mais do que a mera remessa a objetos e a fatos. Há vida na voz que fala; há vida no ouvido que escuta. Nos sulcos lineares traçados pelas letras das palavras escritas, produtos de enunciações, os olhos do leitor não enxergam letras alinhadas, objetos referidos, histórias contadas, mas julgamentos de valor, inusitadas metáforas que escondem ou desvestem crenças consolidadas, um porvir a ser realizado (GERALDI, 2004, p. 84).

Colocar-se em posição de escuta para Ponzio é compreender o sentido do enunciado único, irrepetível, da enunciação não reiterável, e é o que ele próprio faz em relação às obras de Bakhtin; ao invés do domínio e da submissão aos seus conceitos, estabelece uma relação de escuta com as palavras deste autor, e o traz para a discussão em vários contextos de estudo, não o dissociando da vida, algo requerido e reforçado por Bakhtin que insistia em apontar como […] infundadas e essencialmente sem esperança todas as tentativas de orientar uma filosofia primeira (a filosofia do Ser-evento unitário e único) em relação ao aspecto do conteúdo-sentido, ou do produto objetivado, fazendo-se abstração do ato-ação real, único, e de seu autor – aquele que está pensando teoricamente, contemplando esteticamente e agindo eticamente. É apenas de dentro do ato realmente executado, que é único, integral e unitário em sua responsabilidade, que nós podemos encontrar uma abordagem ao Ser único e unitário em sua realidade concreta (BAKHTIN, 1993:45).
Neste sentido, e de maneira complementar a Bakhtin, destacamos Ponzio (2010, p. 36), quando diz que O “não-álibi no existir” coloca o eu em relação ao outro, não segundo uma relação indiferente com o outro genérico e enquanto ambos exemplares do homem em geral. Trata-se, ao invés, de um envolvimento concreto, de uma relação de não indiferença, com a vida do outro, com o próprio próximo (tal proximidade não tem nada a ver com a distância espacial), com o próprio contemporâneo (em que a contemporaneidade não tem nada a ver com a atualidade), com o passado e o futuro de pessoas reais.

Bakhtin ganha nos textos ponzianos a liberdade da palavra, seus textos são dialógicos, alguns deles apresentam diálogos com a presença dos interlocutores, os quais são convidados a discutir, concordar, discordar, refutar ou aceitar, compreender e responder revelando cada palavra “como uma arena em miniatura”. Ao acompanhar seus diálogos o próprio leitor torna-se participante ativo destes, toma posições, e isso, nos diria Bakhtin, decorre da natureza da palavra, que sempre quer ser ouvida, busca sempre a liberdade, e sempre procura uma compreensão responsiva. Os textos que compõem este livro revelam a grandeza e a profundidade das reflexões de Augusto, a diversidade de suas leituras, sua abrangente formação intelectual e cultural. Em “Procurando uma palavra outra”, Ponzio cita, não por acaso, a poesia “Un lector” de Jorge Luis Borges: Que otros se jacen de las páginas que han escreto; a mí me enorgullecen las que he leído.

Perpassam pelos textos questões caras e imprescindíveis, tanto para Ponzio quanto para Bakhtin, como a alteridade, o dialogismo e a escuta da palavra, o que requer mudança, o deslocamento de uma lógica “eucêntrica” para um lugar de reconhecimento de que é o outro quem está no centro, ele é quem define, dá a concessão e organiza quem somos; mas deslocar o centro organizador das enunciações/ações individuais do horizonte do Eu para o horizonte do Outro desestabiliza a visão de mundo dominante em nossa cultura, a nossa visão de mundo. Bakhtin nos diz que a palavra do Outro é uma condição de toda ação do Eu, e Ponzio enriquece este pensamento instituindo o diálogo como a condição da existência do eu – o sujeito. O Eu existe somente na relação com o Outro e o diálogo não é uma iniciativa ou concessão do Eu. O diálogo faz parte da constituição do Eu, é a condição sem a qual este não pode subsistir; o diálogo não é um presente do eu, pelo contrário, o eu individual de cada um é um presente do diálogo, um presente e uma concessão do Outro.

Dentro de uma arquitetônica fundada em temas como ‘diálogo e dialogia’, vê-se um amálgama, onde as noções e conceitos de/sobre o diálogo, a alteridade, a vida, o corpo, a filosofia, e as relações eu/outro se misturam, interpelam, interpenetram e entretecem nossa compreensão de diálogo, dialogia, alteridade, responsividade e corporeidade. Percebemos inúmeras significações possíveis e presentes na diversidade de cada (con)texto, o que nos permite, a cada um de maneira única, um movimento que se revela, também, transcendente e transgrediente – movimentos/pensamentos para além, para uma ‘não cristalização’, afora do que ‘foi e está sendo’ pensado. As leituras e o estudo dos textos nos trouxeram inquietações e nos removeram de nossa centralidade e identidade, uma vez que as relações alteritárias que nos constituem são diversas, e diversos são os contextos em que se estabelecem; os encontros com outros impedem a instituição de uma identidade concluída e estável do Eu, que não pode deixar de ser também diversa e múltipla.
A identidade é armadilha, diz Ponzio constantemente. Escapamos dessa armadilha pela alteridade. Pensar ‘diálogo e dialogia’ a partir do ato singular, do pensamento bakhtiniano sobre a linguagem, dentro de um processo responsivo que permeia, também, o pensamento sobre a estética e a ética em Bakhtin, com a ousadia e atualização ponziana. O eu como singularidade incomparável, insubstituível, como ser no mundo sem álibis, como responsabilidade sem escapatórias, é assim diante do outro. A arquitetônica da responsabilidade não pode ser compreendida senão como arquitetônica da alteridade. Tanto porque só assim o eu se revela na sua unicidade, na sua singularidade, ou seja, na sua alteridade como outro, tanto porque esta sua alteridade objetivamente se realiza na relação com o outro (PONZIO, 2010, p. 79).

Augusto Ponzio nos deu o presente de traduzir e organizar os textos que resultaram neste livro; antes mesmo de tomar forma, nutriu muitas discussões; e a partir desta publicação vamos desfrutar da inevitável participação em outros diálogos, pois “o diálogo é estritamente ligado ao inevitável envolvimento com o outro, e responderá ao outro sem limite de tempo ou espaço”.
Por fim, para encarar a tarefa do acabamento provisório deste diálogo com Ponzio e tantos Outros, um pouco de brisa poética, que refresca, que revitaliza, que movimenta palavras outras de Italo Calvino, a quem Ponzio, em muitos momentos, se refere e referencia, para que sejamos levados a outros, a novos lugares de pensamento, e sem esquecer-nos da grande revolução bakhtiniana, ‘bandeira’ de Ponzio, da alteridade que nos põe diante da inescapável busca/encontro com o Outro, desde o ‘outro-de-mim’ até o Outro que ‘não sou eu’. Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis [CALVINO].

Valdemir Miotello Adriane de Castro Menezes Sales Andrêi Krasnoschecoff Fabrício César de Oliveira Hélio Márcio Pajeú Kelly Cristina Bognar Sacoman Pedro Guilherme Orzari Bombonato Renata Pucci Robson Bussad Caldo Samuel Ponsoni Sidney de Paulo

Ano de lançamento

2016

Autoria

Augusto Ponzio

ISBN

978-85-7993-335-6

Número de páginas

204

Formato