Amazônia: dinâmicas agrárias e territoriais contemporâneas

Francilene Sales da Conceição, Luís Augusto Pereira Lima, Ricardo Gilson da Costa Silva

PREFÁCIO

É para mim especialmente gratificante fazer o prefácio deste livro porque desde criança a Amazônia desperta em mim fortes emoções e muitos interesses. Participar na conquista da Amazônia foi o sonho do meu pai e, desde muito cedo, aprendi a amá-la e a odiá-la: era uma região misteriosa e era o lugar que me roubara do convívio com ele. Em um anexo da minha tese, onde ele retraça o seu itinerário de vida , ao terminar seu relato de pioneiro selecionado para um projeto de colonização agrária em Altamira o faz com outro sonho: “E assim, ficou na lembrança, as dificuldades do passado e, na mente, a esperança de um dia voltar prá lá”… Ao lado das emoções, as racionalidades: a Amazônia me fascina pelos mistérios não descobertos, pelo seu significado local e planetário, pelos embates cotidianos: minha vivência e o começo de meus estudos amazônicos datam dos anos 1980 e sei bem que ainda tenho muito que aprender, pois as dinâmicas que moldam a inserção da mesma em um mundo globalizado não cessam de configurar e reconfigurar este território. Continuo a estudá-la, não perco ocasião de visitá-la, de conviver com seus moradores, de continuar a refletir sobre seus desafios, sobre possíveis caminhos. Neste sentido, a leitura do livro Amazônia: dinâmicas agrárias e territoriais contemporâneas nos coloca em dia com as problemáticas atuais.

Paradoxos, conflitos, controvérsias se sucederam e ainda se sucedem.

Visões de muitas Amazônias, de muitos papéis a desempenhar tanto para suas populações, quanto para os países que as dividem e para o planeta. Pontos de vista distintos sobre o papel de reguladora do clima e de reserva de biodiversidade, sobre a capacidade da sociedade local dominar as dinâmicas regionais e, sobretudo, das consequências de políticas e ações públicas implantadas desde o século passado, vêm servindo aos debates, ora entusiasmados, ora pessimistas demais.

Todos procuram mostrar os prós e os contras do modelo de desenvolvimento predominante implantado. Opiniões se contrapõem, ora indicando que a Amazônia deva ser uma megarreserva natural apenas ocupada por populações esparsas, pois a população atual já superou a capacidade de renovação da biosfera, ora sugerindo que sua incorporação total pelo agronegócio seja apenas uma questão de tempo, talvez ainda umas poucas décadas. Uma única assertiva não tem como ser contestada: parcela de sua população vive em um nível de miséria que os torna, cada dia, mais vulneráveis.

Não podemos aceitar um futuro sem floresta e com baixos padrões de qualidade de vida para parcela da população amazônica. No século passado, Ignacy Sachs (1990) indicava a necessidade de um novo modelo, gestado a partir de nossos erros na ocupação da Mata Atlântica e que não nos permitisse repetir a sua história ambiental. Propunha ordenar atividades econômicas com as restrições ecológicas, em um modelo endógeno, baseado em sua população e cultura. Em 2008 ele nomeia a Amazônia como o laboratório das biocivilizações do futuro e inicia seu texto com as palavras de Mark London e Brian Kelly: “Para preservar a Amazônia, é preciso tocá-la. Não se pode erguer uma cerca a seu redor para impedir a entrada das pessoas, nem expedir ordens de despejo para os vinte milhões que nela residem. Há que usá-la com cuidado nos locais em que é possível usá-la. E há que preservá-la nos lugares em que ela deve ser preservada. Ela não é nem um museu nem um terreno a ser indiscriminadamente devastado e desenvolvido sem critério” . Continua Sachs, “cerca de 25 milhões de Amazônidas vivem hoje na Amazônia brasileira, muitos deles a um nível de miséria que os transforma na espécie a mais ameaçada, como diz o poeta Thiago de Mello. Este escândalo deve parar e havemos de pensar a Amazônia do futuro com trinta, quarenta, cinquenta milhões de habitantes prósperos. Sem nos descuidar da manutenção em pé da floresta existente”.

Quanto deste cenário mudou? Como se deram ou estão se dando as transições ambientais, agrícolas, sanitárias e alimentares? Que dinâmicas são transformadoras? Como elas coexistem? Como estamos implantando um novo modelo?

A floresta urbanizada de Becker mostra o quanto a região se metamorfoseou. São certezas. Mas, muitas incertezas ainda presentes. Questões a respeito das mudanças climáticas, de desertificação, da perda da biodiversidade sem que haja tempo para conhecê-la, da perda da cultura e dos valores humanos não têm ainda respostas.

Os discursos atualmente adotados por diversos atores amazônicos não destoam, em nada, dos grandes objetivos planetários, como os objetivos do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas e do país. Neste aspecto, há unanimidade. Mas, apenas nos discursos.

Os tempos que marcam e marcaram as discussões sobre o desenvolvimento e a conservação ambiental e a proteção das populações são longos. Em contraposição à centralização das ações dos governos militares, políticas botton-up e governança socioambiental foram assuntos inseridos na agenda política. Mas, o tempo para convencimentos e seus reflexos nas políticas públicas são demorados. Enquanto controvérsias estão presentes, enquanto se discute para decidir como e o que conservar e/ou proteger e/ou o quanto converter da floresta, as dinâmicas e as transformações territoriais não esperam. Avançam, cada vez mais, em maior velocidade.

Voltando ao livro, as dinâmicas agrárias e territoriais contemporâneas mostram, sob diferentes aspectos, as muitas discrepâncias na forma de ver o desenvolvimento da região. Durante mais de uma década, no final do século passado e início do presente, debatia-se sobre a necessidade de elaboração do macrozoneamento como o grande caminho para o ordenamento do território e era requerido em todas as discussões sobre políticas públicas, visto que o ritmo da conversão de floresta era bastante elevado. Era a forma de inscrever, no espaço, as estratégias de desenvolvimento. Enquanto o ritmo do desmatamento reduz nas áreas de agricultura já consolidada, permitindo o aumento crescente da produção e produtividade de grãos, em outras, seu incremento ainda é crescente, correlacionando estes índices às novas produções agrícolas que pressionam áreas protegidas, terras indígenas, modos de vida tradicionais. Essas temáticas suplantaram os argumentos acerca do macrozoneamento e zoneamento da Amazônia.

As últimas décadas, os debates e as experiências de novo modelo de governança também passou a fazer parte dos debates e das ações. Todos os segmentos sociais clamam pela participação nas decisões sobre os rumos de seus lugares. Há um embate local-nacional-global e, ainda que questões geopolíticas, de fronteiras, de soberania sejam essenciais, a Amazônia não é apenas brasileira. O bioma, os aspectos da natureza não admitem fronteiras. Seus processos de renovação das condições naturais as ultrapassam.

O livro instiga a curiosidade e nos desafia a olhar pelos diferentes ângulos para tentar compreender o que se passa neste território tão globalizado. Pesquisadores de universidades da região, em parcerias com outras instituições, apresentam resultados de suas pesquisas, dentre as quais, muitas privilegiaram uma das técnicas mais usadas em estudos geográficos: o trabalho de campo, a cartografia geográfica como instrumento de identificação do que ocorre nos territórios. Destaco a cuidadosa busca de dados para comprovar suas hipóteses parciais, construindo uma abordagem inovadora, que tem tudo para prender a atenção do leitor, do início ao fim.

Ao articular pesquisa teórica e trabalho de campo, ao oporem mundos distintos, os autores chamam a atenção para os processos dinâmicos do presente e suas consequências sobre os diferentes atores envolvidos; as sociedades locais, tradicionais ou não; as comunidades e suas resistências, para os quais destacam os agentes das mudanças, as transnacionais presentes, as conexões globais, as esferas federal e estaduais.

Incluindo análises a respeito das sistemáticas e recentes mudanças na transformação da propriedade da terra e na rápida mudança nas áreas ocupadas por populações tradicionais, os autores enfocam um dos problemas mais importantes e agudos para a análise e gestão das dinâmicas territoriais: a questão fundiária. Problemática antiga, cuja solução adotada no governo do presidente Lula foi a Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA, lei 11.952/2009) visava regularizar ocupações em terras públicas, cerca de 67 milhões de hectares na Amazônia Legal e que, nas notícias e instâncias jornalísticas, eram “terra de ninguém”. Nos últimos dois anos (2016-2017) essa política foi bastante alterada com a medida provisória nº 759/2016 e a lei federal 13.465/2017 que se resume em transmutar a terra pública em propriedade privada, permitindo privatização de áreas até 2 500 ha. Com isto tudo, perde o meio ambiente, perdem as formas de vida menos capitalizadas, perde-se a cultura local.

Novas infraestruturas que remodelam a região, a expansão contínua da fronteira agrícola e a formação do complexo agroindustrial, as questões de fronteira política e suas consequências são também apreciadas e enfocadas.

Transparece no livro o engajamento dos autores, por meio de suas contribuições, ao sistematizar e tornar transparentes processos totalmente opacos, assim como a seriedade, a capacidade de interpretação e de análise de uma região essencial para o futuro de suas populações, mas também dos países amazônicos e das questões ambientais locais e planetárias.

São Paulo, setembro 2018.

Neli Aparecida de Mello-Théry
Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP)

Ano de lançamento

2022

Número de páginas

337

ISBN

978-85-7993-529-9

ISBN [e-book]

978-65-5869-762-6

Organização

Francilene Sales da Conceição, Luís Augusto Pereira Lima, Ricardo Gilson da Costa Silva

Formato