Urdiduras do golpe: cartas, jogadores e marionetes

João Wanderley Geraldi

R$50.00

INTRODUÇÃO 

Deixemos como pressuposto inquestionável que não houve apenas uma troca de governo com o golpe de 2016, substituindo-se uma presidenta e sua equipe por outro presidente e outra equipe, com orientação diversa e com um projeto de país recusado pelas urnas. Houve mais do que isso: houve uma mudança de regime, pois a ninguém resta dúvida de que passamos a viver sob uma ditadura de nova face, conduzida pelo judiciário e garantida pela mídia tradicional.

Esta nova forma de condução ditatorial, elaborada pelos interesses econômicos e geopolíticos imperiais, atende a objetivos bem concretos: a energia, a água e os minerais. Assim, a orquestração do golpe que nos atingiu vem sendo composta à distância, no tempo e no espaço. A execução deixada a cargo de atores bem preparados (como é o caso de Moro e seus procuradores e delegados, instruídos diretamente na sede do império), ou mal preparados e incompetentes (como nos casos de Eduardo Cunha, Rodrigo Maia e Michel Temer) ou ao discurso da subordinação voluntária ao capital de que recebe suas sobras (como é o caso da mídia tradicional como as redes de tv aberta, os jornais de grande circulação e as revistas formadoras de opinião).

Num planeta de recursos finitos, riquezas da ordem do pré-sal e do aquífero Guarani atiçam cobiças porque no horizonte não se vislumbra nenhuma nova ordem social que estanque um sistema de produção de desperdícios numa exploração sem limites da natureza. Age-se no regime capitalista como se os recursos fossem infinitos, mas o capital sabe que são finitos e por isso onde há recursos naturais essenciais, não há estabilidade política a não ser aquela imposta pelo silêncio. Com raras exceções – incluindo nelas a Noruega e a sede do império – onde há petróleo – a democracia é de fachada.

Embora a faceta mais visível do capitalismo contemporâneo seja sua face improdutiva, onde o dinheiro gera dinheiro, com a brutal concentração de renda e construção abissal da desigualdade, destruindo a agora desnecessária vitrine do Estado de Bem Estar Social e globalizando a miséria, continuamos a viver num regime de produção de bens gerados pelo trabalho de alguns [cada vez mais a tecnologia está mostrando que poderemos nos ver livres da condenação bíblica ao suor quando da expulsão do paraíso] para o consumo de pouquíssimos e com uma produção brutal de lixo, de descarte, de obscelescência apressada para que a máquina continue a funcionar.

Na literatura, em Relatório Lugano,  Susan George[1] toma esta questão da finitude dos recursos e da exploração “infinita” como seu tema. Na sua narrativa, o capital financiou o encontro dos melhores 100 cientistas do mundo, em Lugano, para que respondessem a uma pergunta: o que era necessário fazer para continuar o mesmo regime nos próximos cem anos? Os debates das personagens, que permitiram à autora trazer para o enredo informações sobre o crescimento da população mundial, levam-nos a concluir que o planeta comportaria um máximo de 4 bilhões de habitantes. Todo o excedente devendo ser eliminado através de guerras localizadas.

Como a vida imita a arte, vivemos sob o terror declarado da doutrina Bush de que “o mundo é um campo de batalha”, assumida por Obama (cf. Jeremy Scahill)[2] e agora aparentemente caranavalizada na forma de guerra alfandegária de Trump (para esconder a guerra suja que permanece existindo e matando gente no Oriente Médio), já que não são as forças políticas que chegam à Casa Branca que definem as linhas de conduta do império, mas o Pentágono, a indústria [bélica, particularmente] e os interesses do capital financeiro.

O pensamento hegemônico, hoje tratado como pensamento único, funciona como uma avalanche, um tsunami que vai levando de roldão, afogados, mesmo os espaços tradicionais da reflexão crítica, como é o caso da universidade onde estão todos às voltas com um produtivismo e sob a ameaça de “retaliações avaliatórias”. Não há mais tempo para o pensamento. Muito menos para a sabedoria. E desde que se decretou, em gabinetes acadêmicos, o “fim da história” e o “fim das grandes narrativas”, uma desculpa está de antemão dada para aqueles que embarcam nas exigências da universidade neoliberal.

Historicamente, nunca foi no interior da universidade que se gestaram mudanças. O fim da Idade Média encontrou barreiras nas cátedras da Sorbonne. A revolução francesa não foi conduzida por acadêmicos. A revolução russa carregou uma bandeira desenhada na luta política. Mas não se pode negar a participação histórica dos intelectuais na elaboração de trajetórias outras para o curso da história. Assim, é para este lugar de fermentação crítica e elaboração de ideias que grande parte da sociedade olha, e a universidade brasileira, dentro do golpe e sofrendo a mesma ditadura de nova face, vem respondendo com cursos livres que tematizam o Golpe de 2016, mesmo correndo os riscos de aparecerem como réus em processos que são movidos pelo Ministério Público Federal, com desrespeito e ao arrepio da liberdade acadêmica.

Narrar o que aconteceu sempre implica, como em todo processo enunciativo, na linha de um continuum do tempo, marcar um ponto arbitrário a partir do qual o enunciador inicia sua narrativa, quando esta não constroi para si própria um mundo de referências interno, como é o caso da literatura. Ora, este ponto definido como um corte sobre um continuum é sempre um ato arbitrário que responde aos interesses da narrativa. A análise dos fatos narrados, obviamente, não pode se impor os mesmos limites, nos dois sentidos deste continuum: de um lado porque se chega a um presente, e portanto há uma caminhada que o antecede; de outro lado, tudo o que acontece no presente aponta para um futuro (e na verdade deste futuro desejado é que se extraem os critérios da ação ou escolha do presente). Assim, a análise sempre ultrapassará os limites cronotópicos de uma narrativa. Como esta análise tende ao infinito, porque sempre revisitaremos fatos e sempre projetaremos horizontes de futuro, também aqui há limitações, ora impostas pelo próprio comentarista, ora pelas suas condições de produção.

Como aqui não se fará história crítica, e para que não se imagine que cada fato comentado capítulo a capítulo, crônica a crônica, esta introdução tem a função de situar os textos que compõem a coletânea. Há que começar em algum lugar e em algum momento.

Reconheçamos, pois, que o mal estar do capital se iniciou desde que o resultado das eleições apontou a vitória de Lula. No entanto, seguindo as concessões que permitiram a vitória, o comprometimento estreito da política econômica de Palocci com o mercado (isto é, com os bancos e com os rentistas) havia paralisado o início do governo Lula, levando, inclusive, ao pedido de demissão de Frei Beto que dirigia o programa Fome Zero.

Seguiu-se o processo, que acabou sendo denominado de Mensalão e, no seu contexto, um escândalo envolvendo Antônio Palocci afasta-o do Ministério da Fazenda. Lula volta às ruas, visita o país. E quando tudo apontava para o desmoronamento dos sonhos e das quimeras, eles são retomados por um conjunto de políticas sociais que desbancou o discurso da “verdade inabalável” do mercado: o ajuste fiscal. Este ‘mote’ de comandar as ações do governo, pois a ele se chegara movido por utopias que não poderiam ser engavetadas.

Foi então que efetivamente programas sociais passaram ao centro da agenda do governo: o avanço do Bolsa Família, os programas de acesso ao ensino superior, a política de aumento real da renda do trabalhador, com a consequente retirada do nível da miséria de 40 milhões de brasileiros. Não surgiu qualquer classe média como a imprensa queria fazer crer. Apenas o trabalhador passou a ganhar mais dignamente, embora ainda nem tenhamos chegado aos pés dos salários de estados de bem estar social.

Dando uma mão a cada santo, numa política de conciliação de classes, o governo Lula beneficiava o povo sem retirar do capital seus lucros e dividendos… E já na segunda metade do primeiro mandato desenham-se três objetivos essenciais e que marcarão, do meu ponto de vista, este final de mandato e o mandato seguinte: o combate à miséria; a inclusão do país no mundo globalizado de forma independente (surgem os BRICS) e o incentivo a grandes conglomerados empresariais capazes de concorrer no mercado externo. Tendo estas três metas essenciais, a necessidade de “governabilidade” para que isso se concretizasse ficou a cargo das assessorias e ministros do Presidente que passou a trabalhar no essencial, deixando o miúdo dos interesses mesquinhos a cargo de outros.

Com a crise criada pela exploração financeira (2007/2008), o governo soube aproveitar a oportunidade: investiu no mercado interno e fez a economia crescer. O país vivia o sonho dourado de que um Estado de Bem Estar Social, fora de época, seria possível também abaixo da linha do Equador (mas é preciso salientar: o Uruguai e em algum tempo a Argentina tinham chegado a patamares a que jamais havia chegado a sociedade brasileira).

Estas políticas sociais acirraram um pensamento meritocrático enraizado na classe média baixa, média e alta da sociedade brasileira, que se sentiu atingida porque subiram para patamares de consumo pessoas que, segundo sua visão, não tinham o merecimento que elas próprias atribuíam a si mesmas. Alguns dos membros desta classe, quando não herdeiros ‘naturais’ do acesso aos níveis superiores de ensino (e consequente exercício das chamadas profissões liberais), eram o que Bourdieu chamou de oblatas, isto é, os primeiros a chegarem à universidade, procedentes de famílias de classe baixa. Conseguiram isso graças ao auxílio da família como um todo, como o eleito entre irmãos e primos. A partir daí, do esforço efetivo e das privações que o esforço demandou, o terreno estará fértil para a ideologia do mérito, que veem ameaçados com as novas políticas sociais que poderiam alterar o quadro que já havia sido apontado pelo longo estudo de Bourdieu e Passeron (1964). Afinal,

… nas chances de acesso ao ensino superior o resultado de uma seleção que, ao longo de todo o percurso escolar, exerce-se com um rigor desigual segundo a origem social dos sujeitos; na verdade, para as classes mais desfavorecidas, trata-se puramente e simplesmente de eliminação. Um filho de quadro superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na universidade do que um filho de operário; suas chances também são o dobro das de um filho de quadro médio. Essas estatísticas[3] permitem distinguir quatro níveis de utilização do ensino superior: as categorias mais desfavorecidas têm hoje apenas chances simbólicas de enviar seus filhos para a faculdade (menos de cinco chances em cem); algumas categorias médias (empregados, artesãos, comerciantes), cuja proporção cresceu nos últimos anos, têm entre dez e quinze chances em cem; observa-se na sequência a duplicação das chances dos quadros médios (quase trinta chances em cem) e uma outra duplicação dos quadros superiores e das profissões liberais, cujas chances aproximam-se de sessenta em cem. Ainda que não sejam estimadas conscientemente pelos interessados, variações muito fortes nas chances escolares objetivas exprimem-se de mil maneiras no campo das percepções cotidianas e determinam, segundo os meios sociais, uma imagem dos estudos superiores como futuro “impossível”, “possível” ou “normal”… (op. cit., p. 16-17)[4]

Por isso, a política de expansão do acesso ao ensino superior, com programas como PROUNI, FIES, política de quotas e a criação de novas universidades públicas em número quase idêntico ao que se chegara em dois séculos de ensino superior “assustaram” aos que pertenciam às classes médias e superioes e àqueles que a elas tinham chegado como oblatas. Assim, todos estes programas, além do bolsa família, passaram a se estigmatizados por esta perspectiva que a mídia soube explorar e aumentar exponencialmente.

As eleições de 2010 fariam emergir publicamente este ponto de vista e o apoio à candidatura de José Serra, que nesta campanha apela inclusive para o sentimento religioso, aumentou consideravelmente.

Acontece que o povo tem memória, alicerçada nos ganhos que havia tido nos seus dois períodos de governo petistas, apesar do massacre a que está sujeito. Votou em Dilma, uma candidata desconhecida que chegou à presidência em função da confiança popular em Lula. Dilma é eleita.

Iniciado seu governo, tinha duas opções na condução da política econômica: continuar o movimento iniciado por Lula de inclusão social, trazendo mais alguns milhões de miseráveis ao mundo do consumo ou, considerando a situação internacional, investir no capital produtivo nacional para que seu “empreendedorismo” continuasse a alavancar o desenvolvimento. Optou pelo segundo caminho: Guido Mantega, que permanceu no comando da economia, costura com o capital industrial e com as centrais sindicais um plano econômico centrado na produção local de bens, neste sentido, seguindo e aprofundando o programa do governo Lula pós descoberta do pré-sal: a exigência de nacionalização da produção de máquinas e equipamentos a serem contratados pela Petrobrás. Começa então a política de redução da taxa SELIC e o incentivo do BNDES às indústrias nacionais.

Acontece que o país já não tinha industrialistas: a FIESP é composta por rentistas… A redução da taxa de retorno mexeu em seus rendimentos. CNI e outras centrais patronais entram para a oposição. Está desenhado o pato amarelo que se tornará, mais tarde, símbolo do empresariado nas manifestações de rua.

Enquanto isso está acontecendo num nível das camadas sociais, num momento histórico em que o país estava investindo em “arenas” para a Copa do Mundo, num país que sempre teve no futebol seu esporte preferido com craques inscritos no jet-set internacional, nas camadas de mais baixa renda eclode o movimento paulistano do “passe livre”. Um aumento nas passagens dos ônibus conduzido sem a escuta dos usuários faz virem para a rua aqueles que querem um avanço nas conquistas sociais, que no governo Dilma pareciam estáticas. Uma reivindicação justa fora do timing político. Estamos em 2013.

Foi o estopim: imediatamente aquela parcela da classe média baixa, média e alta defensora da meritocracia a que nos referimos antes assume as ruas exigindo o impossível: que tudo tivesse “o padrão FIFA de qualidade”. O pato amarelo financia os novos movimentos: MBL, Vem pra Rua, entre outros, comandam as manifestações.

Noutra frente de desestabilização, no campo jurídico, começa a operação Lava Jato, cujo objetivo último e definido do exterior não é o combate à corrupção, mas a destruição das grandes empresas que se tornaram multinacionais e faziam concorrência aos interesses empresariais da sede do império. Para matar dois coelhos numa só cajadada, era preciso destruir a empresa estatal do petróleo que fazia as grandes encomendas às construtoras. Matava-se a fonte de seu crescimento, enfraquecia-se a Petrobrás e o acesso ao pré-sal viria com o sucesso na frente política do golpe.

O primeiro mandato de Dilma chega ao fim no bojo destas destas crises: (1) a provocada pelas ruas e incentivada pela mídia que apostava: enfraquecendo o governo, a proposta neoliberal defendida pelo seu candidato, no caso Aécio Neves, sairia vitoriosa das urnas; (2) a ação demolidora da frente jurídica com o discurso do combate à corrupção com que se escondia a verdadeira razão de ser das operações comandadas pela PF, MP e juízes midiáticos[5].

Começa a campanha eleitoral neste clima: um país dividido em que a direita está nas ruas e não tem qualquer vergonha de expor seu egoismo, suas palavras de ordem, seu desejo de regressão social. A esquerda foi à luta. Os intelectuais, afastados dos governos petistas, retornam à campanha, a suas aulas públicas. O nível de reivindicação baixa as exigências dos movimentos sociais que perceberam o momento político que estávamos vivendo. Continuar a exigir melhorias impossíveis seria um tiro no pé. Quem pediu “padrão FIFA” não foi o povo, foi a classe média, em todos os seus matizes. Neste clima, Dilma se reelege presidenta num clima de hostilidade ímpar: da imprensa, das rua

Ano de lançamento

2018

ISBN

978-85-7993-589-3

Número de páginas

463

Formato

Autoria

João Wanderley Geraldi