Em outro lugar e de outro modo: Filosofia da linguagem, crítica literária e teoria da tradução em, em torno e a partir de Bakhtin

Susan Petrilli

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INTRODUÇÃO

Susan Petrilli

O sentido da orientação da palavra na direção do interlocutor é de suma importância. Substancialmente, a palavra é um ato bilateral, afinal  ela é determinada, da mesma forma, por dois fatores: de quem parte e para quem é dirigida. É palavra justamente enquanto produto da relação recíproca entre falante e ouvinte. Qualquer palavra expressa o eu em relação a um outro. No falar, eu me conformo à perspectiva de um outro e, em última instância, à perspectiva da comunidade a qual pertenço. A palavra é uma ponte construída entre mim e os outros. Se uma extremidade dessa ponte apoia-se em mim, a outra apoia-se no meu interlocutor. A palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor. (Valentin N. Volochínov, “As mais recentes tendências da língua ocidental”, 1928, trad it in V. N. Volochínov, 1980: 195).

Em certos casos, um estudioso inicia o próprio trabalho de pesquisa em uma dada área para depois acabar vagando longamente em outros, mesmo distantes, campos do saber – e nem sempre isso acontece porque o estudioso fez a opção em desenvolver um sistema de pensamento completo, com pretensões de totalização. Ao contrário, quando visa desenvolver um sistema definido e compacto, ou seja, uma totalidade conclusiva e autônoma, a capacidade de envolver amplas esferas da experiência humana é, muitas vezes, somente aparente. Pode-se, ao invés, tratar-se do caso oposto, ou seja, aquilo no qual a amplitude interdisciplinar da reflexão de um pensador é devida ao fato de que, por mais que seja limitada a uma determinada questão, a sua crítica é tão profunda e determinante a ponto de tocar vários territórios circundantes do conhecimento humano e da própria consciência, com todas as consequências que uma tal abordagem pode ter.

Nesse caso, aquilo que permite o envolvimento interdisciplinar não é absolutamente a pretensão de totalização consequente a uma superestimação de um setor disciplinar e, logo, à redução de qualquer outro saber a esse, mas justamente o seu oposto, ou seja, a crítica ao fechamento totalizante, a uma análise, a uma metódica, orientada no sentido da “detotalização”, também quanto à simples pretensão de tal fechamento somente em relação a um setor determinado do conhecimento. É justamente essa orientação que caracteriza a pesquisa de Mikhail M. Bakhtin.

Mikhail M. Bakhtin é um “filósofo”. Declara isso abertamente nas suas conversas com Viktor Duvakin, em 1973 (agora disponíveis na tradução italiana no volume In dialogo, editado por A. Ponzio, 2008), quando responde, da seguinte forma, à colocação “O senhor era mais filósofo que filólogo”: “Filósofo mais que filólogo. Filósofo. E assim permaneci até hoje. Sou um filósofo. Sou um pensador” (Bakhtin, 2008: 120). É importante assinalar que, desde o seu ensaio de 1920-24, conhecido sob o título “Para uma filosofia do ato responsável” (escolhido por Bocharov que editou a publicação em russo, original em 1986), Mikhail Bakhtin (1985-1975) escolhe a literatura, a escritura literária, como ponto de vista (ângulo de perspectiva) da sua reflexão filosófica.

Isso deixou espaço para equívocos interpretativos acerca da “função” de Bakhtin: aquela função que não é nem uma profissão, nem um trabalho, nem uma ocupação: “a função de filósofo”. Frequentemente ele foi confundido com um crítico literário ou com um teórico da literatura. A reconhecida amplitude interdisciplinar da reflexão de Bakhtin, mesmo quando ele se fechou dentro da teoria ou da crítica literária, deve-se ao fato de sua crítica ser filosoficamente orientada.

O filósofo Bakhtin, a partir do ensaio mencionado do início dos anos 20 e com base em uma escolha filosófica, dedica-se inteiramente a escritura literária e não se distancia nunca dela, porque é esse o observatório por meio do qual ele conduz a sua crítica anti-sistêmica e detotalizante, revelando os fios interiores que ligam a literatura ao extra-literário e ressaltando, então, a intertextualidade estrutural subexistente à ligação entre textos literários e extra-literários. Para Bakhtin, o texto literário existe e se desenvolve na sua especificidade de texto literário graças ao envolvimento, também no sentido ético, com o universo exterior.

Este livro propõe-se a contribuir com uma leitura de Bakhtin que evidencie a grandeza semiótica da sua obra, ainda que o estudioso preferisse não designar seus escritos como “semiótica”, pois isso lhe parecia a vinculação de seu trabalho a uma disciplina particular e especializada. Ele preferiu, então, falar de sua obra como “filosofia da linguagem”, porque de tal forma ressaltava a sua orientação crítica, a sua pesquisa sobre as condições de possibilidade, sobre as fundações.

É justamente isso que quero dizer quando afirmo o interesse na grandeza semiótica da obra de Bakhtin, ou seja, importa ressaltar,  neste livro, a amplitude e profundidade crítica de seus escritos, de tal modo que a significação “semiótica” refira-se ao sentido filosófico de teoria geral dos signos, na sua inseparabilidade, evidenciada por Umberto Eco desde o título do seu livro de 1984 (Semiótica e filosofia da linguagem), e segundo o qual foi entendida por filósofos como Charles S. Peirce, Victoria Welby, Charles Morris, que retomaram a sua acepção inaugurada por John Locke no seu tratado sobre o entendimento humano.

O nosso estudo utiliza o trabalho de leitura-interpretação-tradução desenvolvido, nos anos 70, na Itália e no exterior em relação a Bakhtin, particularmente aquele – ao qual eu também contribui – da escola de Bari, a partir da monografia (a primeira de todas) de Augusto Ponzio publicada nas edições Dedalo (Bari), em 1980.

Depois da publicação, em 1968, da tradução italiana (de Giuseppe Garritano) da segunda edição (1963, 1 ed. 1929) da monografia de Bakhtin sobre Dostoiévski, os anos 70 conheceram a edição em italiano, nas edições Einaudi, da coletânea dos escritos bakhtinianos publicados na Russia em 1975, Estética e romance, e editados por Clara Strada Janovic (1979), e a tradução de Mili Romano acerca do trabalho de Rabelais (1965): Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1968). Além desses trabalhos, realizou-se, por iniciativa de Augusto Ponzio, a tradução, nas edições Dedalo, dos três livros publicados nos anos 20 pelos colaboradores de Mikhail Bakhtin e fruto do trabalho comum desenvolvido naqueles anos pelo Círculo bakhtiniano: Freudismo (1927, de Valentin N. Volochínov, trad. it. De Rita Bruzzese, introd de Giuseppe Mininni e A. Ponzio, 1977; Pavel N. Medvedev); O método formal nos estudos literários (1928, trad. it. De R. Bruzzese, introd. De A Ponzio, 1978); Marxismo e filosofia da linguagem (trad de Nicola Cuscito da edição inglês de 1973, mas com o acréscimo da tradução do russo, de R. Bruzzese, da “introdução” a edição de 1930, não incluída da edição inglêsa, 1976). Ainda editada por Ponzio e também pelas edições Dedalo, foi publicada, em 1977, a coletânea de escritos de V. V. Ivanov, J. Kristeva, L. Mateika, I. R. Titunik, Michail Bakhtin. Semiótica, teoria da literatura e marxismo, que continha ainda, pela primeira vez traduzido em italiano (por Nicoletta Marcialis), “Problema do texto” (1959-61) de Bakhtin.

Em 1976, apareceu em italiano e pelas edições Einaudi “Epos e romance”, de 1938-41, no livro editado por Vittorio Strada, Problemas de teoria do romance, depois republicado em Teorias e realidades do romance, em 1977, e editado por Giuseppe Petronio, e em nas edições einaudianas da coletânea de 1975, de Bakhtin. Acerca da relação Luckás/Bakhtin, a propósito do gênero romance intervém também Cesare Cases com o ensaio “A teoria do romance em Luckás e em Bakhtin”, em Methaforein (III, 8, 1979-80: 55-62).

Strada, na introdução a Problemas de teoria do romance, depois de ter exposto as várias posições relativas à teoria da literatura e do romance na Russia no final dos anos 20 e nos anos 30, além daquela de Lukás, assim fala a propósito de Bakhtin:

Deveríamos fechar e refechar aqui o nosso romance teórico sobre as teorias romancescas na Russia, se a história não conhecesse os seus milagres ou, se quiserem, as suas fantasias. Como nos romances Dostoiévskianos, também nas teorias do romance na Russia aconteceu, nos anos 30, um golpe de cena. Mas, já que a história é mais caprichosa do que a literatura, esse golpe de cena foi um golpe de cena secreto, o qual poucos perceberam na época e cujo barulho ouviu-se somente 30 anos mais tarde. Esse milagre ou fantasia chama-se Bakhtin.

Seria necessário ser um Diogene Laerzio para escrever a vida desse pensador e estudioso que viveu longe dos rumores do tempo, mas que no tempo soube colher os ritmos misteriosos e que trabalhou com tenaz genialidade, deixando uma quantidade de trabalho que somente agora, e aos poucos, revela-se depois de décadas de silêncio que envolveram o seu nome desde o fim dos anos 20 até o inicío dos anos 70 (op. Cit., p. Xliii).

Na Itália dos anos 80, a atenção pela obra de Bakhtin é grande – a qual encontrará (em 1984) em Michael Holquist (com a colaboração de Katerina Clark) um Diogene Laerzio, quando o assunto é biografia Já em 1980, como acenamos, é publicada absolutamente a primeira a monografia sobre Bakhtin de Augusto Ponzio: Mikhail Bakhtin. As origens da semiótica soviética. Aqui a pesquisa bakhtiniana é examinada em toda a sua complexidade e no contexto socio-cultural da sua formação, de modo a colher o seu sentido preciso em relação às correntes e posições filosóficas, literárias, psicológicas, culturológicas etc., com as quais essa se confronta e em relação as quais assume a sua inconfundível fisionomia.

Particular evidência é dada por Ponzio à monografia de Bakhtin sobre Rabelais, ao qual já havia dedicado o ensaio “Semiótica e estudo das ideologias em M. Bakhtin” (pp. 7-65), que compõe a mencionada coletânia de 1977, que foi editado por Ponzio e dedicada a Bakhtin. Ponzio (1980) mostra como, no livro acerca de Rabelais, na análise da cultura popular, do carnaval e na relação entre “gêneros altos” e “gêneros baixos”,  foi retomada a distinção, presente em Freudismo de Valentin N. Volochínov, entre “ideologia oficial” e “ideologia não oficial”.

Além disso, são examinadas particularmente as analogias e as diferenças de interesse e de método, no estudo da cultura, entre Bakhtin e Vladimir Propp.

Aquilo que, segundo Ponzio, aproxima o método de análise de Bakhtin com aquele de Propp, independentemente do fato que seja o objeto de estudo, de acordo com cada caso, a fábula, o romance ou as festas agrárias ou a linguagem carnavalesca ou aquela da praça pública, é acima de tudo, a tomada de posição em relação a toda a forma de atomismo que perca de vista a totalidade do fenômeno estudado e as totalidades mais amplas, reduzindo-a a um elemento isolado ou uma combinação mecânica de elementos.

Ponzio encontra confirmação de tal método em Propp e no Círculo de Bakhtin em diversos aspectos da reflexão dos autores em questão, em especial: na crítica de Propp à teoria de Vaselovski do enredo como soma de motivos; na crítica de Medvedev à interpretação da parte de Shklovsky do romance como “costura de novelas”, que ignora a organicidade do gênero; na assunção, no livro sobre o método formal de Medvedev e no Dostoiévski de Bakhtin, do gênero literário como ponto de partida para depois passar ao estudo dos elementos individuais da construção artística; como também na atenção de Propp voltada ao estudo das fábulas de magia, àquilo que as unifica, fazendo-as parecer variações de um mesmo modelo, de uma estrutura comum.

Um outro aspecto notável do estudo de Ponzio nos anos 80 é a reconstrução da concepção bakhtiniana do signo, que, de forma unitária, atravessa os textos publicados por Volochínov e Medvedev e por Bakhtin, tanto o Dostoévsky e o Rabelais quanto aqueles publicados em russo nas duas coletâneas de escritos de 1975 e de 1979. A contribuição de Bakhtin e dos seus colaboradores à filosofia da linguagem e, com isso mesmo, à semiótica no sentido que dissemos é identificada principalmente na crítica da dicotomia, de “origem filológica”, langue/parole, qual atração inútil e enganosa para a compreensão da “vida linguística”; na distinção entre “signo” e “sinal” e, logo, naquela correspondente a diferenciação entre “sentido”, ou “tema”, e “significado” e, por fim, na relação entre signo (verbal em particular) e ideologia.

Através da análise da discussão ocorrida na Pravda, em 1950, a partir da intervenção de Stalin contra os apoiadores da teoria da linguagem de Ja. Marr (que até aquela data era tida como o ponto de referência indiscutível da “linguística marxista”), discussão acerca da falsa questão se a língua é ou não uma superestrutura, Ponzio evidencia como o arranjo bakhtiniano do estudo dos signos e das ideologias mostra a insuficiencia do conceito de “superestrutura” na caracterização dos fenômenos linguísticos e sígnicos em geral, argumentando o contrário, que  o estudo dos signos verbais e não verbais é capaz de esclarecer, no sentido mecanicista, o conceito de “superestrutura”, dada a sua imprescindível função de mediação entre a chamada “infraestrutura” e as chamadas “superestruturas”. Desse ponto de vista, são interessantíssimas algumas partes de Marxismo e filosofia da linguagem de Volochínov, inclusive a introdução de 1930 (tirada da edição inglesa), bem como o primeiro capítulo de O método formal nos estudos literários de Medvedev.

O trabalho teórico de Ponzio de 1980 é, portanto, bem diferente daquele biográfico de Clark e Holquist e possui maior amplitude que o ensaio de 1981 de Tzvetan Todorov, Mikhail Bakhtine. Le principe dialogique.Esse último, assim como o livro de Holquist já citado e a sucessiva obra desse mesmo autor, Dialogism. Bakhtin and his World (1990), achata a obra bakhtiniana por meio da ênfase colocada no conceito genérico de diálogo “com o risco de que esse se torne uma noite hegeliana em que todos os gatos são pardos e não contem mais as diferenças, mas sim o diálogo com fim em si mesmo”, como observa Paolo Jachia (na sua monografia sobre Bakhtin de 1992, p. 133).

Mesmo a proposta de substituir “diálogo” por “intertextualidade”, realizada por Todorov, contribui para que se perca de vista o significado específico e também o papel que o diálogo tem em Bakhtin, em função do seu emprego genérico e abusado no qual é reduzido a um gênero de discurso ou à iniciativa, empreendida por um sujeito (individual ou coletivo), de tolerância e de reconhecimento em relação a um outro. Um outro limite da monografia de Todorov consiste na pouco relevância atribuída ao livro de Bakhtin acerca de Rabelais e às reflexões desse autor em torno da cultura cômico-popular, o que pode ser percebido na total omissão do trabalho desenvolvido por Bakhtin e seus colaboradores em torno da construção de um marxismo crítico.

A tardia tradução italiana, em 1990, do livro de Todorov publicado em 1981 deveria necessariamente ser apresentada incompleta de todo o conjunto de textos do círculo bakhtiniano, que esse tinha o mérito de oferecer pela primeira vez na França e que constituiam a metade do livro. Isso porque na Itália esses textos – com exceção do “Prefácio” de Bakhtin para Ressureição de Tolstoi (1929) que foi editado em italiano no livro de Bakhtin, Tolstoi, editado por V. Strada (Il Mulino) 1986 – foram publicados já em 1980. De fato, com o título de A linguagem como prática social, editado por A. Ponzio, foram recolhidos os ensaios de Volochínov publicados entre 1926 e 1930 (trad. De R. Bruzzese e N. Marcialis, Bari, Dedalo, 1980). No mesmo ano, no segundo fascículo da revista Scienze umane (Dedalo), dirigida por Ferruccio Rossi-Landi e A. Ponzio, são ainda publicados em tradução italiana (de N. Marcialis) dois escritos de Bakhtin, a “Resposta à revista Novy Mir” (1974) e “Bases filosóficas das ciências humanas” (1974) reunidos sob o título “Ciência da literatura e ciências humanas”.

Em 1980, também é publicada a coletânea A cultura na tradição russa do século XIX e XX, com escritos de Vaselovski, Potebnia e Bakhtin – a obra foi editada por D’Arco Silvio Avalle, em Strumenti critici, 42-43, a coletânea. A partir da concepção bakhtiniana de literatura, Avalle evidencia uma série de oposições binárias (epos/romance, imóvel/móvel, trágico/cômico etc.), as quais estão relacionadas, segundo o autor, às categorias humboldtianas de ergon e energheia.

Em 1981, no primeiro número da revista Intersezioni, é publicado um ensaio de V. Strada intitulado “Diálogo com Bakhtin” e a tradução de C. Strada Janovic das “Anotações” de Bakhtin de 1970-71. Esse mesmo texto será posteriormente incluído, juntamente com a “Resposta a Novi Mir” (mencionada acima), na tradução da coletânea russa de 1979 dos escritos de Bakhtin, publicada com o título O autor e o herói, editada pela própria C. Strada Janovic, em 1988. Vittorio Strada identifica dois “conceitos chaves” no “modelo dialógico” bakhtiniano no que que diz respeito a obra literária: aquele da “grande temporalidade” e aquele da “extra-localidade” (p. 123). Ainda assim, ele não consegue colher a especificidade de tal “modelo dialógico” devido a sua preocupação em encontrar analogias entre Bakhtin e o neokantismo, a filosofia heideggeriana, a filosofia de Hans Gadamer, querendo dar um “enquadramento de Bakhtin como filósofo personalista”, com a obra de Martin Buber e “talvez” com aquela de Max Scheler (v. p. 118).

Em 1981, ainda é publicado, em Belfagor, 6, o artigo “Michail Bakhtin” de Remo faccani, autor juntamente com Mario Marzaduri, da seção “A semiótica na URSS”, presente em Carlo Prevignano (editado por) sob o título A semiótica nos países eslavos (Feltrinelli), 1979.

Nesse mesmo ano, de 1981, é publicado o livro de A. Ponzio Sinais e contradições. Entre Marx e Bakhtin, nas edições Bertano (Verona) , no qual teoria da linguagem e da literatura de Bakhtin são consideradas em função da construção de uma perspectiva teórica para enfrentar problemas fundamentais, tais como aquele da linguagem, da tradução, da relação de alteridade e da relação de contradição. Outro elemento importante desse livro é o confronto – não direto, mas sempre em consideração e em função dos problemas tratados – com Marx, um Marx liberado das interpretações prejudiciais e estereotipadas que o próprio Marx havia começado a tomar posição declarando: “Uma coisa posso dizer com certeza: que eu não sou marxista!”. Particularmente importantes são, nesse livro, os capítulos: “Polissemia e tradução”, na qual são confrontadas, entre outras coisas, as posições de Bakhtin, de Noam Chomsky e de George Steiner (o autor de After Babel de 1975); “Marrismo e stalinismo em linguística: uma falsa alternativa”, que é uma precisa e documentada análise do debate de 1950, ocorrido na Pravda, ao qual já fiz referência, em torno da teoria de Marr, que havia visto entrar em campo o próprio Stalin: tal debate é revisto por Ponzio à luz da concepção da linguagem de Bakhtin, que o marrismo dominante na URSS, até o seu descrédito por meio de Stalin em pessoa, havia contribuído para sufocar; “A manipulação da palavra do outro. Sobre as formas do discurso relatado”, por meio do qual evidencia a importância da III seção de Marxismo e filosofia da linguagem de Volochínov, dedicada às formas do discurso relatado (discurso direto, indireto, indireto livre); e “Lendo juntos Vigotski e Bakhtin”, onde se retoma a análise do importante trabalho teórico desenvolvido por esses dois autores nos anos 20 sobre o problema da consciência, da linguagem e da arte e da literatura.

Enfim, deve-se lembrar desse livro de Ponzio como uma espécie de manifesto em relação às tentativas de enquadrar a posição de Bakhtin em dado campo, corrente ou sistema filosófico-ideológico. Essa problemática, discutida no capítulo “A palavra outra de Mikhail Bakhtin” (originalmente encontrado em Alfabeta, em janeiro de 1980), é concluída da seguinte forma pelo autor  (p. 150):

Que a alteridade da palavra seja um elemento essencial em Bakhtin pode ser dito não só por aquilo que diz respeito ao objeto das suas análises. A própria palavra de Bakhtin apresenta sua alteridade: primeiramente, em relação ao seu tempo histórico. Uma palavra que permanece outra, nos anos 20, em relação a dois pólos do formalismo e do sociologismo “marxista”, no terreno do debate literário na URSS; em relação à oposição “individualismo subjetivístico” (Humboldt, Vossler, Croce, Potebnia) e “objetivismo abstrato” (Saussure, 1916) no terreno do estudo da linguagem; e nesse mesmo terreno, em relação à linguística “marxista” de Ja. Marr e à oposição entre marrismo e anti-marrismo do debate de 1950 na Pravda; além disso, no que diz respeito ao estudo das ideologias, em relação ao idealismo e ao materialismo mecanicista. Uma palavra “outra” também no âmbito da psicologia, em relação às teorias oficiais que, apagando o trabalho de Vigotski, dominam na época stalinista; assim como em relação à tomada de posição que, a partir dos anos 30, afirma-se na URSS em relação à psicanálise. Isso pode ser dito também em relação à semiótica. Se podemos considerar Bakhtin como um precursor da semiótica, isso não deve ser entendido no sentido de que a sua posição seja ligada a esse ou àquele endereço semiótico, nem mesmo daqueles (Lotman, Ivanov etc.: a chamada escola de Tartu) que se voltam a Bakhtin. Explicitamente: também aqui existe um alto grau de “alteridade” que faz com que a teoria do signo social, do signo ideológico e, em particular, do signo verbal de Bakhtin, seja mais um termo de confronto, de verificação, de colocação em discussão da semiótica oficial e das suas matrizes saussurianas, peircianas, morrissianas, husserlianas etc., do que um elemento de confirmação ou de antecipação (Ponzio, Signos e Contradições…, cit.)

De 1982 é a segunda edição do fundamental livro do filósofo da linguagem Ferruccio Rossi-Landi, Ideologia (1a ed. 1978) que dedica um parágrafo a “Linguagem e ideologia em Bakhtin e Volochínov” (ivi: 192-203). Aqui observa-se que o maior mérito dos textos de Bakhtin, Medvedev e Volochínov é a indicação da “necessidade de uma nova e criativa abordagem marxiana aos problemas seja da linguagem, seja da ideologia seja das suas relações” (ivi: 203), e a denúncia de que se instalaram fortemente categorias mecanicísticas em todos os campos simplesmente tangenciados ou totalmente negligenciados por Marx e Engels.

Em 1983, o fascículo 7 de Metamorfosi (Angeli) é inteiramente dedicado à Bakhtin com o título A Linguagem, o corpo, a festa. Para um repensamento da temática de Mikhail Bakhtin, que contou com ensaios de autores com interesses disciplinares diversos: desde a história das tradições populares e da etnologia à história medieval, à filosofia e à teoria da literatura, da eslavistica à hispanística etc. A contribuição de Pietro Clemente, em “Idéias do carnaval”, é interessante pela compreensão do carnaval pelo viés dos estudos demológicos, com a retomada da posição de Bakhtin com base na abordagem de Frazer, de Van Gennep e de Caro Baroja. Nesse texto, é expressa a exigência de uma leitura do carnaval aderente às suas concretas manifestações, mas nem por isso privada de respiro teórico.

Interessante também é “O trabalho, o jogo e a festa. Anotações sobre Marx e Bakhtin”, de Amedeo Vignorelli, que se orienta contra o “pregressivo fechar-se da consciência socialista dentro de uma estreita consciência funcionalista, com a consequente condenação moralista não somente do ‘jogo’, mas de todos os aspectos não economicistas da consciência emancipativa e revolucionária” (p.61). Interessantíssima é, a partir desse ponto de vista, a escolha de Bakhtin para contrapor a sua concepção da festa, expressa, acima de tudo, no Rabelais, como essencial ao humano, como fim em si mesma e como visão do mundo alternativa, àquela dominante e funcional ao afirmar-se do modo de produção capitalístico. A leitura de Marx, ao invés, segue estereótipos interpretativos de tipo economicista. Foge completamente a concepção humanística de Marx, que é centrada na liberação do homem do trabalho na sua atual configuração e da alternância tempo de trabalho/tempo livre, a esse complementar; e, além disso, sobre a liberação do homem do trabalho funcional a necessidades como condição do advento do “verdadeiro reino da liberdade” (III livro do Capital) e sobre a contraposição, em relação à pseudo riqueza do trabalho, da verdadeira riqueza de tempo disponível uma vez tornado tempo de todos a seguir de uma reorganização e reapropriação social das vantagens da automação (Grundrisse).

É preciso ressaltar, enfim, a resenha editada por N. Marcialis, “Bakhtin e o seu círculo”, que resume o conhecimento das obras do círculo de Bakhtin (de Medvedev, Volochínov, L. V. Pumpianski, M. I. Kagan e faz uma lista dos escritos de Bakhtin em ordem de publicação e das traduções em italiana até 1981. Precedentemente a N. Marcialis, foi publicada, em Resenha soviética, 3, 1982, “A filosofia do diálogo de M. Bakhtin” (pp. 153-59).

Em 1983, por iniciativa de Clive Thomson, aconteceu a primeira Conferência Internacional dedicada a Mikhail Bakhtin, “M.M. Bakhtin, his circle, his influence”, na Queens University de Kingston (Ontario, Canada).

Com data de 1984, mas só conhecido posteriormente, em 1985,  foi publicado o volumoso fascículo (434p.) da revista L’immagine riflessa, n. 1/ 2, Saggi su Bakhtin (Ensaios sobre Bakhtin), editado por Nicolò Pasero, com escritos de autores italianos e estrangeiros. Esse texto também é composto por uma bibliografia, editada por M. Bonafin, de todas as publicações até 1984, em italiano, de textos de Bakhtin e sobre Bakhtin. Interessante é também a introdução de Pasero ao fascículo. Nela é  apresentada a importância, na concepção bakhtiniana, do conceito de extralocalidade, que é utilizado inclusive como um relevante pressuposto  para uma leitura da obra do estudioso russo que queira evitar os estereótipos e as interpretações preconstituídas da sua recepção: em relação ao que tentou se passar por bakhtiniano no mercado cultural, Bakhtin poderia dizer que não é “bakhtiniano”, aplicando a ele a piada de Marx sobre o sua natureza não “marxista” (v. p. 3).

Entre os estudos dedicados a Bakhtin no mesmo ano, é necessário lembrar o capítulo de Cesare Segre “Aquilo que Bakhtin não falou. As origens medievais do romance” publicado no seu livro Teatro e romance. Dois tipos de comunicação literária (Einaudi). Posteriormente publicado em inglês (“What Bakhtin left unsaid: the case of the Medieval Romance”) em um volume editado por Kevin e Marina Bronwlee, Romance: Generic Transformatios from Chrétien de Troyes to Cervantes (1985: 23-46), o capítulo critica a concepção de romance de Bakhtin porque este apresenta a paródia e a polifonia medievais sacrificando a narrativa medieval. Segundo Segre, Bakhtin separa a história dos procedimentos polifônicos da história da invenção narrativa e mistura, nas categorias da polifonia, fenômenos com origens e funções diferentes. Para Segre, então, a relação autor-herói, necessária à narração, é confundida por Bakhtin com o projeto de representação das estratificações linguísticas da sociedade.

[…]

Ano de lançamento

2013

Autoria

Susan Petrilli

ISBN

978-85-7993-167-3

Número de páginas

415

Formato